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Monstros Fabulosos

MONSTROS FABULOSOS

 Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 380, maio/2004

Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

Leviathan, por Paul Gustave Doré (1832-1883)

Aterradores e fantásticos, terrivelmente perigosos, são os monstros mitológicos, criaturas geralmente híbridas que há milênios habitam os mares, os céus e a terra, encerrando estranhamente em si enigmas portentosos que, se decifrados, podem nos levar ao conhecimento profundo dos aspectos que jazem em nosso mundo interior.

Enormes e medonhos, os monstros aglutinam em suas aparências mais bizarras as projeções de nossos medos irracionais; são anteparo de tudo aquilo que é feio ou caótico, de forças potencialmente perigosas e instintivas que podem facilmente nos destruir ou nos petrificar para sempre, ou ainda nos engolir em sua instância abissal. Por outro lado, são eles que nos desafiam a vencer os obstáculos que representam, provocando em todo aquele que diante deles se descobre herói, a possibilidade de romper as amarras do medo, de galgar lugares inauditos, de conquistar tesouros preciosos ou paraísos esquecidos.

Na simbologia hermética, os monstros assumem o sentido dos ritos de passagem, afinal, são eles terríveis criaturas que devoram o homem velho a fim de que um ser inteiramente novo possa renascer. Nesse aspecto, os confrontos com essas brutas feras são sempre provações de função depurativa, cumprindo transformar o herói, espiritualizando-o.

As mitologias todas oferecem abundantes imagens de monstros gigantes, via de regra instalados à porta de cavernas ou templos proibidos, velando túmulos reais ou princesas raptadas, também dormentes ao pé de montanhas ou fontes mágicas interditas, a representar os enigmas que se antepõem aos selos invioláveis ou as barreiras que nos separam dos segredos alquímicos mais ocultos. Comecemos pelas criaturas ctônicas, habitantes das profundezas oceânicas e subterrâneas.

Héracles e Cérbero – Versari

Sem dúvida, um dos mais famosos monstros mitológicos é Cérbero, o cão do Hades, guardião de dupla função, a cuidar do umbral do reino dos mortos, para que ali não penetrem os vivos nem dali fujam os mortos. Hesíodo o descreve com 50 cabeças e voz de bronze. Na mitologia clássica, porém, sua figura é a de um apavorante cão tricéfalo, com o dorso recoberto por escamas eriçadas de serpentes e cauda de dragão. Cérbero é filho de dois monstros: Equidna, mulher gigante da cintura para cima, que traz em vez das pernas uma cauda de víbora, e Tifão, concebido da cólera de Hera, descomunal dragão de cem cabeças, capaz de estender-se de modo a tocar o Oriente com sua cauda e o Ocidente com as patas dianteiras, com asas no lugar dos dedos, enrolado de serpentes do ventre aos tornozelos, capaz de cuspir fogo pelos olhos.

Cérbero sintetiza o “terror da morte” e alude ao inferno interior de cada um. Héracles, em cumprimento de seu 11º trabalho (dos 12 que foram impostos pelo rei Euristeu), deveria descer ao Tártaro e de lá trazer Cérbero dominado. Única vez em que o monstro deixou por pequeno período seu posto de guarda foi esta. Deus Hades permitiu ao herói que fizesse o serviço desde que não se valesse de arma alguma contra o cão. Usando tão-somente a força de seus braços, Héracles domina o animal e o arrasta à superfície da Terra, onde consegue finalmente sufocá-lo. Leva-o então, desacordado, ao palácio de Euristeu. O rei, ao ver o bicho, refugia-se em um jarro de bronze, de onde grita apavorado ao filho de Alcmena que devolvesse o quanto antes o terrível cão ao Hades.

O mito reforça a idéia de que os terrores instintivos, nossos infernos pessoais, só podem ser completamente dominados caso sejam trazidos a um nível superior, quando são iluminados e reconhecidos à superfície dos abismos onde se escondem.

Em contrapartida desta “prova de fogo”, bem representada pela descida de Héracles aos infernos, igualmente funcional é o rito aquático enfrentado pelo herói diante da temível Hidra. Habitante do pântano de Lerna, na Argólida, ela é uma incomensurável serpente de muitas cabeças, cujo número varia, conforme a versão mítica, de cinco a cem. Seu sangue é venenoso e seu hálito pútrido e pestilento é o que basta para destruir homens, rebanhos e colheitas. Para desespero de Héracles, conforme uma das cabeças da Hidra era por ele decepada, outras duas nasciam em seu lugar. A batalha só pôde ser vencida com a ajuda de Iolau, sobrinho do herói. Orientado pelo tio, conforme as cabeças iam caindo pela espada de Héracles, Iolau cauterizava os pescoços feridos com uma tocha, impedindo assim sua regeneração. A cabeça central, porém, de todo imortal, exigiu de Héracles o expediente de enterrá-la num buraco que foi para sempre lacrado por um enorme rochedo. 

Uma interpretação do mito nos leva a associar a Hidra aos nossos defeitos múltiplos e vulgares, todos mantidos vivos pelo principal dos vícios: a vaidade. Enquanto esta não é definitivamente dominada, suas ramificações renascem e proliferam, impedindo-nos de extirpar quaisquer de nossos aspectos indesejados sem que outros novos ocupem seu espaço. As muitas cabeças da Hidra ensinam ser inútil toda tentativa de drenagem de nosso pântano psíquico se não cuidarmos de estancar definitivamente a fonte mãe de onde escoam tantos vícios.

Outro ser aquático que merece referência são as perigosíssimas sereias. Embora sua imagem na modernidade suscite a idéia de beleza e sensualidade, nem os gregos nem outras mitologias antigas demonstraram por elas ingênua simpatia. No canto XII da Odisséia, vemos que Ulisses só consegue escapar de seu mortal encanto por ter obrigado seus homens a tapar com cera os ouvidos, a fim de que não se deixassem levar por seu hipnótico chamado, conquanto ele se fez amarrar no mastro de seu barco, de modo a poder ouvi-las cantar sem o risco de lançar-se ao mar no intuito de alcançá-las.

Sereias atacam embarcação nórdica em mar revolto.

Sereias atacam embarcação nórdica em mar revolto.

As sereias descritas pelos gregos são mulheres com cabeça e tronco humanos, providas de asas, com a metade inferior do corpo terminando em escamas, feito peixe. Dotadas de um forte desejo sexual, atraíam pelo canto suas vítimas. Não podendo, entretanto, realizar o coito, por serem frias da cintura para baixo, rasgavam com seus dentes e unhas o corpo dos incautos que delas se acercavam e bebiam seu sangue, em evidente substituição de um líquido por outro. Convém lembrar, esperma (que em grego significa “semente”) e sangue, são fluidos universalmente ligados à idéia de “força vital”, tidos como capazes de emprestar vida, ainda que momentânea, aos espectros abúlicos dos mortos, sempre que escorrem. As sereias, portanto, são verdadeiros vampiros opressores, ávidos pelo néctar vital com o qual podem manter-se vivas nas frias profundezas oceânicas.

Tomando a vida por uma grande travessia, as sereias simbolizam as armadilhas que nascem das paixões, diante das quais precisamos feito Ulisses nos prender à dura realidade do mastro, eixo de um navio que é nós mesmos, cujo lastro depende de nossa adequada relação com o ilusório mundo dos desejos. Curiosamente, a mitologia grega faz destes demônios aquáticos as irmãs das esfinges, criaturas abomináveis que reinam no mundo aéreo, igualmente dotadas de um instinto cruel e devorador.

Le Sphinx Triomphant, aquarela de Gustave Moreau, 1888

Le Sphinx Triomphant, aquarela de Gustave Moreau, 1888

São inúmeras as esfinges; o mito de Édipo, entretanto, popularizou de tal forma a de Tebas, que as outras todas se acham quase extintas das páginas literárias. A esfinge grega, cujo simbolismo em nada confere com o da esfinge egípcia de Guizé, tem sua figura oriunda da Mesopotâmia. Trata-se de um monstro feminino, mescla que reúne rosto de mulher (e por vezes seios) ao corpo de um leão alado. Seu nome provém do verbo grego sphínguein, cujo sentido é oprimir, envolver, sufocar. A esfinge tebana habitava o cume do monte Fíquion, de onde avistava todo arredor, voando em direção àqueles que se punham a seu alcance, para diante deles proferir sua famosa charada em versos hexâmeros, pela qual perguntava qual o ser que pela manhã anda com quatro patas, à tarde com duas e à noite com três. Na ausência da resposta, devorava impiedosamente a todos quanto desafiava. Édipo foi quem primeiro decifrou o seu enigma: “É o homem”, disse ele, “que na infância engatinha, na idade adulta caminha sobre as pernas e na velhice o faz apoiando-se sobre o cajado”. Destituído assim de seu poder de intimidação sobre os homens, o monstro precipitou-se no abismo e lá teve seu fim.

Édipo e a Esfinge; óleo sobre tela de Jean Auguste Ingres, 1808

Édipo e a Esfinge; óleo sobre tela de Jean Auguste Ingres, 1808

A esfinge associa-se à devassidão, à dominação perversa. Encarna o poder da chantagem individual, também as tiranias e as pragas psíquicas que se alastram pela mente coletiva, como foi, por exemplo, o nazismo do século XX. O poder tirânico, entretanto, nunca é eterno; nem a mentalidade chantagista prevalece ou perdura em seu caráter venenoso. Para vencê-los, é certo, requer-se a astúcia e a lucidez de espírito, sempre amigas da verdade. Édipo representa a libertação do ego diante da ameaça dilacerante e opressora da maldade humana, da exploração do homem pelo homem, razão pela qual é feito a partir disso rei de Tebas.

‘Harpia’, ilustr. a bico de pena do alemão Matthius Merian (1593-1650)

Assemelhadas das esfinges são as harpias, cujo nome grego provém do verbo harpádzein, que se traduz por “raptar”. Criaturas horrendas, têm rosto de mulher bem velha, seios caídos, garras aduncas e corpo de abutre. São três estes gênios alados: Aelo (a borrasca), Ocípete (a que voa rápido) e Celeno (a obscura). Sua passagem sempre perigosa visa arrebatar preferencialmente crianças e jovens para lançá-las no Tártaro, provendo-o assim de almas vitimadas por uma morte súbita. Ademais, todo alimento do qual se aproximam e que não conseguem carregar, transforma-se em carniça pelo contato com seus excrementos. Simbolizam aspectos psíquicos obsedantes, destruidores e arrebatadores, que se alimentam do remorso e da culpa, capazes de lançar a alma ao abismo do pânico e do desespero. Seus maiores inimigos são o vento Boreas e seus dois filhos, Zetes e Calais, que vivem a afugentá-las; nítida alusão ao sopro de vida, à inspiração capaz de desanuviar o estado de intoxicação obsessivo.

Teseu matando o Minotauro, ânfora-sec.VI-a.C

Teseu matando o Minotauro, ânfora-sec.VI-a.C

Para finalizar e cumprir com nosso texto a ligação entre esses dois mundos, aéreo e ctônico, tratemos do plano terreno em que vivemos, também atormentado por uma infinidade de monstros. Dois deles melhor o representam, pois guardam curiosa relação de complemento simbólico entre si: o Minotauro e os centauros. O primeiro é filho de Pasífae, esposa adúltera do tirano Minos. Ela havia pedido a Dédalo que lhe fizesse uma vaca branca de madeira, em tamanho natural, dentro da qual se ocultou para satisfazer seu desejo de entregar-se a um touro. Do ato bestial nasceu o infeliz monstrengo, com corpo de homem e cabeça de touro, que logo foi aprisionado pelo rei num labirinto, também construído por Dédalo. Fruto de uma união proibida, a insaciável criatura exigia alimentar-se regularmente de carne humana. A cada nove anos, eram-lhe sacrificados sete rapazes e sete donzelas. Tal tributo, imposto por Minos ao subjugado povo ateniense, só viria a ser finalmente extinto com a morte do monstro pelos braços de Teseu. 

Já os centauros, originários da Tessália, contrariamente ao Minotauro, têm sua metade humana sobre a metade animal; são homens, geralmente arqueiros, ao mesmo tempo quadrúpedes, com corpo de cavalo. Ainda que algumas famílias de centauros possam ser rudes e desregradas, a maioria delas tem predileção e amizade pelos homens. Aliás, ter “espírito de cavalo” entre os gregos é ser fiel e sincero. Os centauros são, sobretudo, seres silvestres e bucólicos, capazes de bom relacionamento com os homens, muitas vezes participando de seus cultos, festas e banquetes.

Quíron e Aquiles – arte romana

O centauro mais nobre da mitologia é Kheirón, ou Quíron, sábio e habilidoso com as mãos (daí o nome “cirurgião”, oriundo do grego kheirurgós). Grande pedagogo, provido de dons artísticos, Quíron instruiu uma diversidade de heróis e semideuses, entre eles Héracles, Aquiles, Jasão e Asclépio, ensinando a medicina a este último. Ferido acidentalmente por uma flecha de Héracles, embebida no veneno da Hidra de Lerna, em Quíron abriu-se uma chaga incurável. Embora o ferimento nunca cicatrizasse, era incapaz de extirpar-lhe a vida, posto que Quíron, por ser filho de Cronos, era imortal. Sofrendo eternamente, desejou certa feita pôr um basta a esta sua condição lancinante. Rogando a Zeus, foi autorizado a ceder a Prometeu sua imortalidade, com o que Quíron pôde finalmente descansar na abóbada celeste, na constelação de Sagitário.

L’Educacion de Aquille, Pompeu Batoni, óleo s. tela,1770

Interessante notar nestas duas criaturas híbridas terrenas que, conquanto o Minotauro representa o rebento da perversão humana, também um estado psíquico de dominação malévola, capaz de devorar as almas, os centauros, por sua vez, traduzem a aspiração da alma pelas artes e ciências, pela sabedoria, pelos ideais divinos, por sentimentos de fidelidade e amizade. Por isso suas metades bestiais e humanas estão antagonicamente colocadas; o Minotauro é o homem encimado pelo instinto irracional, dominado por funções brutas e obscuras do psiquismo, já os centauros representam nossos corpos densos que buscam resolver-se em estado anímico transcendente, na procura espiritualizada pelo ideal estético de beleza e amor.

Ocasião oportuna para citarmos o poeta alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926):

Se existem terrores, são os nossos terrores; se há abismos, esses abismos são nossos… todos os dragões da existência são, talvez, princesas adormecidas que esperam ver-nos belos e audazes um dia. Todas as coisas assustadoras não são mais, talvez, do que indefesas, e esperam por nosso socorro. 

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