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Plutão, Pai das Estações – Parte II

Plutão Mitológico – ATO I

— Comecemos pelo nome: Plutão é um eufemismo.

— Como assim? – cobramos.

— Sempre que os gregos se viam obrigados a citá-lo, a fazer-lhe menção… preferiam dizer ‘Plutão’ a proferir seu real temido nome.

— A citar quem? – perguntamos.

Levando a mão esquerda em concha à boca, pondo-se a segredar, ouvimos seu soprado murmúrio:

— Ha… des…

— Hades? – replicamos, a confirmar o nome.

— Psiiiiiiiuu! – censurou-nos, indicador estirado à frente dos lábios cerrados – não se deve citá-lo se pudermos evitá-lo.

Parecia comédia, ambos temerosos por havermos proferido o nome interdito.

— Roga a lenda que pronunciar seu nome traz azar. Equivale a convocar a morte para perto. O que menos queriam os antigos era topar com sua figura pelo caminho.

E por nos ver assim, apreensivos, Nicolau rasgou-se em gargalhar. Depois, refazendo-se, continente, pôs-se a relatar:

— Após a assim chamada Gigantomaquia, luta dos deuses contra os titãs, o Universo grego faz-se tripartite: Zeus toma para si o Mundo Superior e lá do alto do monte Olimpo põe-se a reger o Universo, os deuses e os homens. A seu irmão Posêidon é dado o vasto império dos Mares e Oceanos, e a Hades é entregue o Mundo Inferior, as entranhas da Terra, de onde, em meio às trevas brumosas ele reina sobre os mortos. Embora de etimologia discutível, os antigos gregos chamavam Hades a esse lugar, posto ser a morte uma entidade invisível, não obstante sua concreta realidade: nome formado pela anteposição do prefixo a (sem) ao substantivo eidos (imagem), a designar ‘aquele de quem não se conhece a face, aquele do qual não sabemos sequer que rosto tem’; ou, ainda, pelo mesmo prefixo a unido agora ao verbo eiden, a nomear ‘aquele que não pode ser visto’.

— Na origem das palavras, seu secreto sentido… – suspirei.

Cineu de Hades (aqui, a título de exemplo, um elmo ao estilo Atheniense)

— Vale lembrar que a Gigantomaquia retrata como os gregos intuíam houvesse sido a tormentosa época em que a Terra ainda se assentava em sua órbita. No transcorrer desta guerra, os Cíclopes uranianos, Brontes, Estéropes e Arges, embora fossem gigantes, fazem-se aliados dos deuses. Ferreiros que eram, detentores dos segredos do fogo e dos metais, presenteiam Zeus com o raio e o trovão; de mesmo modo, forjam a Posêidon seu poderoso tridente, também propagador de raios e causador dos maremotos; já a Hades, ofertam o cineu, elmo mágico que torna invisível quem o usa, a reforçar o sentido de seu nome.

— E qual o sentido desse nome, ‘Plutão’, com o qual, devido ao tabu, os antigos preferiam chamá-lo? – quis saber Alan.

— Plutão significa ‘o rico’. Excelente alcunha para um deus que por toda a eternidade só recebe e mais recebe… que, sem esforço algum, de almas e mais almas se enriquece. Mas o eufemismo não guarda respeito apenas à quantidade sempre crescente de seus hóspedes, senão também às incomensuráveis riquezas que jazem ocultas nos seios da Terra, de onde provêm as pedras e os metais preciosos, isto sem contar os rios que brotam das cavernas, sem os quais os reinos vegetal e animal pereceriam. Paradoxalmente, Plutão encerra em seu âmago a fulcral contradição: por um lado é o deus dos mortos, por outro é patrono da agricultura, das técnicas agrárias. Plutão responde pelo binômio ‘morte-vida’, em sua inominável essência reside o maior dos paradoxos.

— Sobrou-me uma dúvida, uma questão… – era eu quem o interrompia.

— Pois, não?

— Levando em conta que Plutão é invisível, como é que os antigos o representavam?

— Falemos primeiramente disso, então. De mesmo modo que seus dois irmãos, Hades ostenta longas barbas espessas. Seu ar é austero, severo. No mais das vezes, uma coroa feita com galhos e folhas do ébano, ou do cipreste, árvores associadas à imortalidade, cinge-lhe a fronte. Ele tem ainda um majestoso carro tirado por quatro exuberantes corcéis negros, mas o mais frequente será tê-lo magnânimo, postado em seu trono de ébano e enxofre, situado no umbigo do Tártaro, de onde reina portando à destra um cetro negro, por vezes uma forquilha, ou ainda uma lança, conquanto sua mão esquerda detém um molho de chaves, a indicar que as portas da vida estarão definitivamente trancadas a todo aquele que venha um dia buscar abrigo em seu reino.

— E diante dessa aversão que seu nome inspira, os gregos lhe rendiam préstimos? – quis saber Alan – Plutão era adorado em alguma cidade?

— Eu não diria que fosse adorado. Afinal, era mais por temor que os gregos o reverenciavam. Mas, sim, era preciso que lhe prestassem devidamente suas honras, muito embora fossem raros os seus altares. Rendiam-lhe homenagens mais pelo receio de ofendê-lo do que para pedir-lhe graças, propriamente.

— E como eram seus ritos? – Alan completou sua questão.

— Quase não havia templos em seu nome, menos ainda hinos que lhe fossem dedicados. Sabe-se que em Nisa, cujo patrono era Baco, ergueu-se um templo para Plutão, dentre os raros que lhe foram consagrados… havia um santuário para ele em Opunto, também em Trezena, outro ainda em Pilos. Seus templos eram abertos apenas uma vez ao ano e neles só entravam os sacerdotes, mesmo porque o povo, via de regra, preferia manter toda distância possível desses lugares. E a reforçar o fato de ser ele ‘o rico’’, as cerimônias funerárias costumavam ser de altíssimo custo, encomendadas somente por gente abastada que insistia em obter notícias direta ou indiretamente de seus antepassados.

— As sessões espíritas do mundo antigo! – gracejou Alan.

Gargalhada dada, Nicolau prosseguiu:

Hades – deus dos mortos

— Ritos ao Senhor dos Mortos eram exclusivamente noturnos, realizados preferencialmente sob a Lua nova. Só podiam ser sacrificados animais de pelagem negra, sempre em número par, que eram amarrados ao altar com a cabeça para baixo, já seus olhos vendados com lenços igualmente negros. Então, rasgava-se o ventre do sacrificado com um punhal cujo cabo era de ébano ou cipreste, e o sangue era todinho drenado para um buraco cavado na terra; especialmente as coxas das vítimas eram oferecidas a Hades.

— E quanto à carne e o sangue das outras partes? – indagou o amigo.

— Ao contrário do que ocorria nos sacrifícios oferecidos a todos os demais deuses, os sacerdotes de Hades nada reservavam das vítimas imoladas para si, nem mesmo parte alguma era entregue a seus acólitos, muito menos a seus patrocinadores; todos temiam ficar com algo que pudesse depois ser motivo de desagradado por parte de seu deus, sinistro este que lhes acarretaria no mínimo umas boas e pesadas maldições, quiçá a própria morte. E sendo estes os principais costumes de ordem ritualística, creio seja hora de desfiar seu mito.

Encheu nossas taças, Nicolau propôs:

— Aos mortos e aos vivos, brindemos saudosos e cheios de alegria!

— Viva!

— Ergamos nossas taças a Plutão e Deméter, aos quais ouso chamar pelo epíteto de ‘os pais das quatro estações’.

— Brindemos, pois!

— E de onde provém o epíteto? – eu quis saber.

— Preferência minha – respondeu Nicolau – com a qual hão de concordar, como veremos, assim espero.

Deméter e Perséfone (relevo em mármore – circa sec. 5 a.C.)

Pusemo-nos ainda mais atentos para a história que viria.

— Não à toa o mito grego nos apresenta um Plutão em litígio com Deméter, cujo nome traduz a própria Terra ( = terra + Méter = mãe). A deusa tinha uma filha, chamada Core, cujo significado diz: ‘a jovem’. Isto até ser raptada, posto que a partir do famigerado rapto ela passa a ser chamada de Perséfone: ‘aquela que traz o desalento’. Já os romanos, diretos no trato, preferem dizê-la Prosérpina, cujo significado é ‘a destruidora’. Bem se vê a boa-estima com que a tinham os antigos; talvez a tratassem assim por desaprovarem seu caráter absolutamente passional, mesclado ao seu jeito próprio de não levar a vida muito a sério. Quiçá até a invejassem por conta disso.

Curiosíssimos, pedimos-lhe o obséquio dos detalhes.

Nicolau fez-se o suspense em pessoa:

— Sem dúvida alguma, o maior impasse de toda a mitologia! Vida, paixão e morte em efusiva profusão!

— Lá vem história! – falamos juntos, entusiasmados.

— Já estamos nela. Dentre tantas versões, ninguém jura ao certo, o mais aceite é que o rapto tenha se dado no bosque de Ena, na Sicília, embora haja quem o situe aos pés do monte Cilene, lugar em que uma gruta daria entrada para o reino dos mortos. Outros apontam a Ilha de Creta como palco, ao passo que Homero alude que o ocorrido tenha se dado na planície de Misa, lugar utópico sem correlato geográfico. Menos importando o lugar, o caso é que Core se divertia colhendo crisântemos, lírios e tulipas em companhia das ninfas oceânicas. Um narciso previamente encantado por Zeus a atrai para um local mais ermo, com o que Core distancia-se de seu grupo. Ao agachar-se para apanhá-lo, entretanto, o chão se lhe abre sob os pés, com o que a jovem, assustada, vê-se literalmente à beira de um abismo. Core solta um grito agudo, ouvido em toda a região. Deméter, próxima dali, corre em seu auxílio, mas, chegando ao presumido local de onde viera o apelo, não encontra sua filha. Indaga às ninfas, mas estas nada sabem informar É que a terra, num átimo se fechara tão logo Plutão a houvera arrebatado com seu ossudo braço, conquanto, ato contínuo, a puxara para dentro de sua sombria carruagem. Dado ao cineu que o mantinha invisível, apenas duas testemunhas oculares do fato, um deus e um humano, mais tarde revelariam à Demeter ter visto sua filha sendo abruptamente levada, embora nada pudessem afirmar quanto à identidade de seu raptor.

— Típico prólogo daquele seriado de suspense, o ‘Arquivo-X’ ! – observou Alan, todo empolgado.

O Rapto de Prosérpina – Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) – escultura em mármore, 1621-22, Galleria Borghese, Roma

— Nem é preciso dizer, Deméter fez-se desespero. Por nove dias e noites a fio, sem comer nem beber, sem banhar-se nem dormir, ela erra perdidamente à procura de sua filha, perguntando a todos os seres e a todas as coisas por seu paradeiro, contudo, sem lograr encontrá-la. Eos, a aurora, deusa de fulva cabeleira, desde os primeiros raios da manhã testemunha diariamente sua sina até o despontar do carro de Hélios, o Sol, que continua a observar a deusa em prantos, a caminhar pelos prados e montanhas, isto até a hora em que Vésper, primeira lanterna da noite, vem emprestar-lhe as demais estrelas que lhe fazem companhia em sua incansável busca noturna, e isto até o dia seguinte, quando, de novo, era Eos quem se levantava para de novo espreitá-la em sua dor. No décimo dia, porém, havendo alcançado o Elêusis, na Ática, exausta do mundo, descrente de tudo, Deméter disfarça-se na figura de uma velha e resolve pela primeira vez descansar ao lado de um poço e à sombra de uma oliveira. Deméter se senta sobre uma rocha que recebe então o nome de Agélasté (aquela que jamais sorri), infinita era sua tristeza. Pranteia aí sentada até ser surpreendida por uivares lúgubres que vêm em sua direção. Ela logo vê, são as lobas batedoras de deusa Hécate. As feras a cercam e põem-se a lamber seus pés, anunciando a chegada de sua dona que, compadecida de sua situação, vinha prestar-lhe apoio.

Deusa Hécate das 3 Faces

— Hécate! Deusa dos feitiços, rainha das encruzilhadas! – não se conteve Alan que, Adepto da alta magia, vivia a render-lhe homenagens.

— Em sua divina pessoa! Embora ctônica e sombria, Hécate está intimamente ligada aos ciclos e ritos de fertilidade, é protetora dos partos, inclusive. Geralmente representada por uma mulher tricéfala, cada uma de suas cabeças dada a uma distinta fase lunar: crescente, cheia e minguante. Pois…, é ela quem seca por alguns instantes as lágrimas de Deméter, revelando-lhe que também houvera escutado o grito de Core. Convida-a, então, para que juntas fossem ter com Hélios, posto ser ele nenhum outro senão aquele tudo vê à luz do dia. Não custava indagar a ele, na certa saberia informar algo.

— A tal divina testemunha ocular do fato… – completei.

— Um ilustríssimo covarde, por sinal, comparando-se à testemunha humana.

— Conte-nos!

Deusa Hécate por William Blake (1757-1827)

— Ora, ele bem sabia; conforme Hécate apontara, o Sol havia presenciado a cena, sua carruagem estava prestes a bater o zênite por ocasião do rapto. Intimado a prestar esclarecimentos, Hélios confirma ter visto a cena: sim, Core estava a colher flores junto às ninfas, mas… quando resolveu olhar de novo, não viu mais a donzela. Sumira num passe de mágica. Receoso das represálias que poderia sofrer caso interferisse na política firmada entre Zeus e Plutão, mesmo diante de uma mãe em desespero, o bom moço, modelo de beleza e perfeição, prefere mentir, alegando nada mais saber informar. Sonega a crucial informação, posto que não só conhecia a identidade do raptor como também o local do cativeiro.

— Miserável! Mas por que Hélios não preferiu a verdade? – era Alan, indignado.

— Incrível! Mas o fato é que diante de tamanha trama Hélios melindrou. Receoso em bulir num vespeiro olímpico, tergiversou.

— E que trama era esta, a intimidar o próprio Sol? – perguntei.

— Intriga das mais perversas, que se elevara da mansão dos mortos para os céus, indo bater às portas do Olimpo. Uma questão que se propunha desde a divisão tripartite do Cosmos, quando Zeus, como vimos, assumira o trono do Olimpo, dando a Poseidon o domínio sobre os oceanos e a Plutão a supremacia sobre os mundos ctônicos.

Alan e eu não despregávamos os olhos de mestre Nicolau, que agora se punha novamente a circular pela biblioteca, mexendo aqui e ali nas estantes, roubando um livro de uma das prateleiras para adequar noutro espaço mais adiante, impondo-nos pausas e gestos bem pensados, a dar a densidade dramática necessária ao que iria revelar-nos. Uma hipnose de salão.

— Vejamos como tudo começou…

Abrindo com classe a segunda garrafa de tinto, o mestre deu seguimento:

— Vale dizer que raríssimas são as vezes em Hades deixa seu reino; seis ao todo, segundo bem contei. Em quatros destas, aproveitando o ensejo, visita o Olimpo. Primeira vez que deixou seu reino foi quando raptou a ninfa Leuce, cujo nome quer dizer ‘a branca’, a quem tomou como primeira esposa. Deste enlace matrimonial falarei logo a seguir.

— Não sabia que já houvesse sido casado antes de conhecer Core… – comentei.

Héracles toma Cérbero de Hades – ânfora (circa sec. III a.C.)

— Pois, sim. Sua segunda saída é a primeira ocasião em vez que se vê forçado subir ao Olimpo. E o fez à procura de Apolo, a fim de rogar-lhe curasse uma ferida em seu ombro direito, ora rasgado por uma flecha de Héracles. Isto porque num de seus últimos trabalhos, o herói desce aos Infernos a fim de trazer consigo Cérbero, o terrível cão tricéfalo que, segundo mitólogos como Robert Graves, seria em verdade uma cadela. A fim de impedir Héracles neste seu intento, Hades se atraca a ele em violenta luta corporal, mas acaba levando a pior. Apolo, deus da medicina, atende ao apelo de seu tio e lhe cura a escara. Em sua terceira saída é que Hades pela primeira vez contempla Core. Em sua radiante beleza, a jovenzinha estava a dançar e a tocar flauta em companhia das ninfas oceânicas, quando então, ele se apaixona por ela à primeira vista. Boatos cuidam que isto se dera por capricho de Afrodite, que, invejosa da resignação com que Plutão enfrentava a solidão, a fim de desbancá-lo, pura atuação neurótica, mandara seu filho Eros feri-lo com a seta da paixão. A quarta vez, segunda subida ao Olimpo, dá-se ao fato de Asclépio ter-lhe despertado intensa ira, isto porque o médico, entregue ao bom desemprenho de sua missão, estava a salvar da morte muitos moribundos, havendo até mesmo ressuscitado alguns dos navegantes mortos na expedição dos argonautas.

Asclépio – deus da medicina

— Fantástico Asclépio! – exclamou o confrade.

— Perante Zeus, Hades presta veemente queixa, acusando o médico de, por agir assim, estar a sonegar almas ao mundo dos mortos. Zeus não somente acolhe a acusação como ordena aos ciclopes Arges, Brontes e Estéropes, que fulminem Asclépio com seus raios. A quinta vez em que Hades deixa seus domínios, terceira subida ao Olimpo, dá-se quando o deus dos mortos resolve derramar suas mágoas sobre o trono do irmão. E a última escapada, como vimos, será justamente por ocasião do rapto de Core.

— Plutão, magoado? – estranhei.

— Ora, se não! Sofria de uma gelada dor de cotovelo! A propósito, bem mais doída que a ferida sobre o ombro, há muito cicatrizada. Pois bem, Plutão fora reclamar de sua maldita sina nas plagas do amor, sentimento este proibido para ele. Pois, não havia deusa no Olimpo nem criatura na Terra que o aceitasse por marido. Desposá-lo, toda mulher sabia, seria decretar-se à eterna clausura num mundo sem luz, nada convidativo, oposto a todo e qualquer romance idealizado. Como disse, Plutão até já havia tentado ser feliz com a ninfa Leuce, filha de Oceano e Tétis, cujo nome diz respeito à absoluta palidez de sua pele, fetiche este que lhe provocava todo tipo de frissons e arrepios. Não resistindo à tentação estética, Leuce foi, pois, a primeira jovem que Plutão raptou, a fim de fazer dela sua rainha. Ela bem que gostou do partido, mas o enlace estava fadado a ser coisa passageira… afinal, a ninfa era uma simples mortal e, por mais que fosse fiel ao marido, aceitando o desafio de viver nas profundezas, viria a morrer ao término do fio de seu destino, conforme tecido pelas Moiras. Plutão, ora viúvo, pela primeira vez pôde compreender algo mais a respeito do luto, tirando disso lições mortais de acachapante surpresa. Inconsolável em sua dor, buscando imortalizar sua amada, Plutão transforma o cadáver de Leuce no álamo branco que, desde então, plantado por ele, abunda nos bosques dos Campos Elíseos.

Hades, Leuce e a Flor do Álamo Branco (ilustr. de Sandara)

— Nunca pensei que um dia apiedar-me-ia de Plutão… – confessei, olhos marejados.

— Terrível sina a dos malditos! – resignou-se Alan, semblante de pesar.

— O fato é que a argumentação de Plutão era de uma lucidez estonteante, própria das mágoas mais antigas. A Zeus não houve por onde negar, sua solidão era assertiva, ele advogava com a autoridade de proscrito. Vinha comunicar ao irmão que se apaixonara por Core, sua sobrinha, ao vê-la graciosa a cirandar com as ninfas. Notara na moça uma pujante sensualidade, por óbvio herdada de Deméter, sua mãe, mesclada a uma intensa vitalidade, própria de Zeus, seu pai. E alegando que a jovem era em tudo diferente das demais mulheres que, inertes e melancólicas, habitavam seu mundo, Core acendera nele a esperança de finalmente haver encontrado sua esposa, sua eterna rainha. Pudera! Até mesmo seu gelado coração carecia desse alguém com quem pudesse comungar de alguma intimidade de alma, dessa presença que lhe atenuasse o tédio natural aos mortos, essa estagnação a que seu mundo andava condenado. Core lhe faria um bem enorme: não só traria de volta seu denegado sorriso, como aplacaria seus rancores mais cáusticos por saber-se assim, a figura mais temida e odiada pelos homens, aquela cujo nome ninguém ousava proferir. Para terminar, deixa claro que não subira ao Olimpo a fim de pedir ao irmão autorização alguma, senão porque julgava de bom tom dar-lhe a devida satisfação quanto às suas pretensões matrimoniais.

— E Zeus, como foi que saiu dessa? – disse Alan, batendo palmas.

Zeus – deus dos deuses

— Não saiu, nem entrou. Simplesmente fez-se de rogado. Agiu politicamente, como sempre. O encontro teve ainda Apolo por testemunha. E combinaram: Zeus não queria ter problemas com Deméter; ora, como iria explicar à mãe de sua filha que ele, de antemão, tinha ciência do rapto? Pior, que fosse condescendente com a macabra ideia de Core ser levada a habitar para sempre o reino dos mortos? Por outro lado, como negar razão a seu irmão proscrito? Como furtar-se às suas queixas de deus solitário? Logo ele, Zeus, cujas parceiras e amantes, entre divinas e mortais, chegavam à casa das centenas? Que Hades fizesse, pois, o que bem lhe aprouvesse, concordava Zeus, desde que, bem acertado, seu nome jamais aparecesse em nenhum desses planos. Pacto firmado, os dois impuseram ainda a Apolo seu silêncio, razão pela qual o deus Sol (em sua manifesta apresentação como Hélios) agiria depois, dissimuladamente, ao ser questionado por Deméter quanto ao rapto de sua filha.

— Um jogo de bastidores!

— Cartas marcadas!

Mais do que aprender mitologia, assistíamos a ela tal qual uma peça de teatro a desenrolar-se à nossa frente. E o mestre deu sequência à cena:

— Findada a entrevista, antes que Plutão partisse, Zeus lhe entrega uma poção mágica de romã, beberagem por ele mesmo preparada, haja vista um de seus epítetos ser o de ‘Zeus Pharmaticon’ (o Farmacêutico). E solenemente adverte o irmão que duas são as razões pelas quais deveria oferecê-la a Core, certificando-se de que a jovem dela sorvesse em sua presença: primeiro, porque se tratava de um filtro de amor, cujo encantamento faria todo aquele que dele provasse apaixonar-se imediatamente pela primeira pessoa que visse à sua frente; e, segunda, porque quem quer que houvesse bebido ou comido algo, fosse o que fosse, no mundo dos mortos, assim rogava a Lei, restaria para sempre no Além aprisionado. Lembremos que o narciso que atraíra Core para longe das ninfas fora também artifício de um Zeus calculista, mancomunado com os planos do irmão. Talvez, algo culpado por reinar à luz do dia conquanto Plutão estivesse fadado a viver nas sombrias cavernas do Tártaro, Zeus bem compreendeu suas necessidades. Tanto torcia pela alegria do irmão que julgou conceder a ele nada menos que a mão de sua própria filha, ainda que o fizesse à revelia de Deméter e em atropelo ao coração da menina.

— E o que se deu com essa mãe? Na última cena chorava no Elêusis, aos cuidados de Hécate – lembrou o confrade.

— Verdade. Retomemos: após a tertúlia com Apolo, Hécate deixa Deméter sentada naquela mesma ‘pedra sem alegria’. Dela se aproximam então quatro lindas jovens que vinham tirar água do poço. Seus nomes ficaram gravados na história: Demo, Calidice, Cleisidice e Calitoé, filhas do casal que reinava no Elêusis, Celeo e Metanira. Vendo aquela anciã de estampada tristeza, perguntam-lhe o que faz por ali. A deusa inventa que fora raptada por saqueadores, dos quais, por sorte, conseguira fugir, em razão do que nem sabe ao certo onde se encontra, presume estar perdida. Compadecidas, as quatro irmãs a convidam a acompanhá-las até o palácio onde moram, a fim de lá descansar e matar a fome. A pedido de suas filhas, Celeo e Metanira recebem a senhorinha com generosidade, e tão boa impressão têm ao entrevistá-la que a convidam a cuidar de seu filho Demofonte, uma criança de colo. A deusa passa então a servir de ama ao menino, embora continue sem sorrir, sem comer nem beber, também não dorme nem se banha. Em retribuição à hospitalidade, porém, decide conferir imortalidade ao pequenino, com o que passa a alimentá-lo durante os dias da ambrosia, que ela faz brotar dos dedos de suas mãos, para então, às noites, levá-lo diretamente ao fogo, no qual o prepara sem, contudo, causar-lhe nenhuma queimadura.

Deméter servindo Metanira (Hydria ou Ânfora Eleusiniana vermelha, circa sec. III a.C) detalhe.

— Muito semelhante ao que faz deusa Ísis no palácio de Biblos, com o filho recém-nascido do casal de reis que a acolhe quando de sua busca por Osíris – lembrei.

— Exatamente, o mesmo mitologema aqui se repete e não se sabe qual dos dois se fez primeiro. Pois bem, numa das noites em que Deméter levava ao fogo Demofonte, é surpreendida por Metanira que, ao vê-la em seu ofício, dá um grito horrorizada e se atira contra a anciã, tomando-a por louca infanticida. Mas logo constata que seu filho está intacto, nenhuma queimadura havia em seu corpinho. Sem compreender o que se passa, vê a anciã transfigurar-se, que se lhe revela ser Deméter. Metanira prostra-se de joelhos e lhe pede perdão. A deusa, claro, compreende seu natural desespero de mãe. Adverte-a, entretanto, que devido à interrupção do procedimento mágico, Demofonte restará mero mortal. E convoca Celeo com toda a família à sua presença. Uma vez reunidos, Deméter orienta o rei para que erga então um santuário que a ela será consagrado, no que é prontamente atendida. Passam-se os dias… conforme o Templo é erguido, Deméter permanece no palácio, agora como hóspede de honra. Mas ainda se lamenta, e jura jamais pôr seus pés no Olimpo novamente até que Core lhe seja devolvida. Pela primeira vez admite que possa tê-la perdido para sempre, com o que, desolada, adoece… sua enfermidade faz com que a Terra toda, em concomitância, comece a perecer… entendam… um estado irracional de uma mãe a provocar um cósmico dilema!

— Compreendo! Sucumbisse Deméter, seria simplesmente o fim da humanidade – ponderou Alan.

— E dos deuses, inclusive! – completou Nicolau.

— E como se dissolveu-se o impasse? – perguntamos, apreensivos.

— Por conta da segunda testemunha ocular é que a situação sofrerá um empurrãozinho…

— A testemunha humana! Quem é ela? – quis saber.

— Triptolemo, um digno rapaz, o primogênito de Celeo e Metanira. Tendo participado da reunião familiar convocada pela deusa, e depois, ao percebê-la ainda condoída mesmo com as obras de seu templo já avançadas, ele humildemente lhe pede uma entrevista. Quer saber a razão de sua dor. Ao fazer-se ciente de sua história, leva às mãos à cabeça. Ele é só interjeições! Ironia do destino não haver sabido antes… É aí que revela à deusa as informações que tem sobre o caso, a partir do que nela se acende nova chama da esperança.

— Esses gregos… sempre primando pela amarração de suas tramas… – exclamou Alan

— Os melhores novelistas! – concordou Nicolau, dirigindo-se ao mancebo de canto de sala, do qual sacou uma meia capa, vestindo-a sobre os ombros. Da parede desprendeu uma máscara de couro, peça de arte a decorar a biblioteca e, pondo-se em pé à cabeceira da mesa, com uma das mãos erguendo a persona à frente do rosto, encarnou Triptolemo:

Triptolemo Consola Deméter (óleo sobre tela de Karl Maria Schuster, 1871-1953)

— Ó, deusa! Eu estava a cuidar dos rebanhos de meu pai em região próxima daqui, quando, olhando morro abaixo, vejo uma jovem que, despercebida, se punha a colher flores. Graciosa menina! Ocorre que, de repente, para espanto meu, o chão se abre sob ela, do abismo sobrevém um tremendo carro negro puxado por quatro corcéis igualmente cor da noite. E foi aí que um braço ossudo, só vejo um braço, arrebata-a com violência, subtraindo-a para dentro da carruagem. Tudo tão rápido que me restou impossível ver a face do raptor. E já no instante seguinte o solo se fechou. Tudo de tal modo instantâneo que ainda me pergunto se não tive uma miragem.

E mudando por completo o timbre e a entonação de sua voz, Nicolau prosseguiu:

— Maldito seja este meu irmão! Por óbvio, o descarado vestia o cineu! Pois, esse desgraçado vai ver com quem foi que se meteu!

E depositando a persona sobre a mesa, disse-nos que ali se encerrava o primeiro ato. E indagou se não queríamos ir embora para retornar noutra noite, a fim de acompanhar os ‘finalmentes’. Depois de quase morrermos protestando, ele, sempre jocoso, acatou nossas queixas.

— Vamos ao segundo ato, então!

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… este texto continua em … Plutão Mitológico – ATO II

Para ler todo ele desde o início, acesse: 
Plutão, Pai das Estações – Parte I

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