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Jaguar dos Maias

Plaza Mayor do Templo I del Gran Jaguar, c. 700 d.C., Tikal, Guatemala – foto de Maria Rodrigues

Alan, confrade de Ordem, desta vez não me acompanhava. Aproveitara-se do recesso prolongado de fim de ano para compor sua monografia a respeito de ‘Fausto’, de Goethe (1749-1832), obra alquímica que há anos vem estudando, pelo que se isolara numa pousada em meio a cascatas cristalinas, aos pés do Vale do Matutu, nas Gerais. ‘Faz-se mister absoluto silêncio a fim de discernir o ambíguo senso do que nos sopra Mephisto a cada fala’, disse ele ao despedir-se de mim, levando consigo duas mochilas, uma inteiramente de livros.

Por tal razão privava-me da atenção exclusiva de Sotero. Apreciávamos um excelente tinto provençal que o mestre trouxera de sua última visita a Cote d’Azur. Em sua biblioteca-laboratório, após eu ter lavado muito bem ambas as mãos, folheava seu Bestiário, quando me deparei com sua majestade, o jaguar.

O mestre o desenhara torneando o corpo de uma sacerdotisa, a passear por seus seios e costas desnudos, por seus braços e pernas, e ainda a deslisar sua pele, língua protusa a lamber-lhe o pescoço. Bela e fera entrelaçadas assim numa espécie de dança ritualística, mais pareciam compor um único corpo híbrido. Inteiramente traçado a nanquim, completo domínio de luzes e sombras, contrastava-se intenso brilho no olhar da fera.

— O jaguar é divindade maia das mais importantes – disse Sotero – em seu sagrado calendário, Cholq’ij na língua k’iche’, sua figura está representada pelo décimo-quarto Nahual, cujo nome é Ix, que expressa toda sua força instintiva. Ix é um dos cinco nahuales brancos, cuja família está relacionada ao poder de materialização de nossos sonhos na realidade cotidiana.

— Seus olhos parecem acesos! – exclamei.

— Pois, procurei dar a eles o brilho da almandina.

Trono Jaguar – peça elaborada pelo artista plástico Eduardo Vilela, maior nome brasileiro em se tratando de réplicas maias e egípcias.

— Almandina? – impressionou-me a sonoridade do termo que me pareceu ser mais um dos neologismos do mestre, marca de seu estilo literário. Mas eu me enganava.

— Almandinas são pedras com que os maias incrustavam os olhos de seus deuses jaguares – explicou-me Sotero, sorvendo de seu cálice. Precisamente, são silicatos à base de ferro e alumínio pertencentes à família das granadas, de onde decorre sua cor avermelhada. Simbolicamente, as almandinas associam-se aos rubis e a elas atribui-se o poder de brilhar mesmo nas trevas. Dado ao seu formato amendoado, a lembrar o dos olhos, afirma-se serem as almandinas pedras-guia dos viajantes. Balam, o grande jaguar, divindade noturna e feminina, costuma ser representado com uma almandina em cada olho, daí esse efeito que busquei imprimir à iluminura, conforme bem observaste.

O Bestiário de Sotero se fazia mais fascinante a cada página. Fantásticas gravuras a bico de pena, com as quais, hipnotizado, eu me deleitava.

— Milenares crenças maias fazem do jaguar uma entidade primeva e civilizadora. Além de ter ministrado aos homens a agricultura, Balam é protetor dos campos de milho e ainda ‘Guardião do Fogo’, elemento este do qual é ele o primeiro depositário na cosmogonia maia, ainda que não tenha sido o seu inventor. Tanto os maias quanto vários outros povos ameríndios centrais e do sul, incluindo nisso etnias indígenas brasileiras, dentre elas os Jurucarés e os Tupinambás, têm o jaguar como aquele que entrega o fogo aos homens, a fim de que estes prosperem através das gerações, à moda do que fez Prometeu dos gregos.

Com sua liberdade em ir e vir pelo universo de diferentes mitologias e religiões, prosseguiu o ancião:

— Os maias k’iche‘ veem também no jaguar a deusa Lua-Terra. Desde a terceira idade maia que as sacerdotisas consagradas a esta deusa híbrida se vestem com suas peles, trazendo nas mãos suas garras e expressando em sua dança o sempre mistério das metamorfoses, próprio da ‘metade Lua’, ao passo que sua ‘metade Terra’, ctônica, encarna forças subterrâneas igualmente secretas. Senhor do inframundo, o jaguar assume também caráter psicopômpico, a guiar as almas dos mortos pelos caminhos invisíveis que devem ser trilhados.

— Então podemos relacionar o jaguar dos maias a Osíris dos egípcios…

— Mais adequado seria relacioná-lo a Atum dos egípcios, bem entendido fique, desde que façamos vista grossa às imprecisões que surgem cada vez que nos arriscamos a comparações deste tipo. Claro que encontramos inesgotável variedade de deuses com semelhanças entre si dado aos atributos e poderes que os caracterizam especificamente, independentemente das mitologias a que pertençam. Nada de errado em relacionarmos divindades que guardem entre si certas afinidades, mas todo cuidado é pouco para que não caiamos no erro comum de tomar nominalmente uns pelos outros, como se Thor dos nórdicos fosse Júpiter dos romanos só porque são deuses dos raios e trovões, ou querer fazer de Hades grego o Supae dos Incas, só porque ambos estes deuses são ctônicos.

— E por que o jaguar está mais próximo de Atum que de Osíris?

Olhos cheios de vida, como os do jaguar que desenhara, Sotero completou:

— O jaguar dos maias jamais será Osíris nem Atum; dentre estes dois, porém, sim, é de Atum que mais se aproxima. Isto porque os egípcios chamam Atum ao deus Sol ‘Rá-Heracti’ a partir do instante em que ele submerge nas águas do Nilo, fadado que está todas as noites a atravessá-las, até que volte a ressurgir no leste como Aton, ao romper das auroras, a cada novo dia. Semelhantemente, os maias creem seja o jaguar aquele que devora o Sol todo dia à hora do crepúsculo. Monumentos do período clássico centro-americano consideram a goela do jaguar o próprio céu estrelado. É ele, o jaguar, o engolidor do Sol, a fera que o mantém invisível até o raiar da manhã seguinte, quando então, é vomitado. Tal qual Atum dos egípcios, os maias também nomeiam seu ‘Sol oculto’ representando-o pelo jaguar negro que, embora caminhe todas as noites pelas entranhas da Terra, não deixa de portar em seu bojo toda a potência da mãe-Lua, contraparte de seu caráter divino. Por isso é que o jaguar negro leva preso às suas costas uma vieira, a concha marinha, símbolo do útero e da concepção; ele carrega consigo, pois, a lição de que todo nascimento é consumação de um milagre oculto que, só mesmo quando a termo, vem à luz.

— Pois, não é justamente a vieira o símbolo dos peregrinos de Santiago de Compostela?

— Exatamente; não à toa muitas moças na Espanha são batizadas com o nome de Concepción (Conceição), designativo este que se espalhou por toda a América espanhola em seu diminutivo afetivo, Concheta,  que literalmente quer dizer ‘conchinha’. Ora, não é justamente a viera que está a servir de base ao ‘Nascimento da Vênus’, imortal pintura de Botticcelli, concebida em 1485?

E antes que nos entrássemos madrugada adentro nos passos do jaguar, discutindo as maravilhas do Calendário Maia, que, conforme me explicou Sotero, em nada corresponde às proposições do ‘sincronário da paz’, invenção (não maia) do estadunidense José Arguelles (1939-2011), detive-me a meditar nos decassílabos heroicos manuscritos pelo mestre logo à direita da ímpar iluminura que ele pintara:

JAGUAR

(do Bestiário Alquímico de Christiano Sotero)

Eu sou a deusa Terra unida à Lua,
sou patas, nobres garras e almandina
são meus olhos, rubi que determina
ver sempre além das faces a alma nua.

Por isso fiz-me assim, deusa felina,
sou eu o olhar da noite em trevas cruas,
do Sol devoradora abro-me em ruas
a anunciar a oculta medicina.

Dourada ou negra a tez, luz que ilumina,
sou Prometeu dos Maias: guardo o fogo
que o avanço das culturas mobiliza;

meu sangue liga as almas ao seu rogo,
meu corpo é nua mãe-sacerdotisa;
Jaguar, eu sou Balam, fera divina!

Christiano Sotero – C+S .:.
N.N. D. N.N.

2 Comments

  1. RITA DE CASSIA CELENTANO disse:

    Penetrou feito REZO!
    Gratidão!
    Ahô

  2. Marina disse:

    Este texto preencheu lacunas de entendimento e me despertou perguntas. Não poderia estar mais grata.

    Esplendoroso trabalho.

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