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A Tempestade e o Tarô de Shakespeare

A TEMPESTADE E O TARÔ DE SHAKESPEARE
We are such stuff as dreams are made on

William Shakespeare2.0.33

Iniciei minha leitura de Shakespeare (1564-1616) tinha 15 anos, e o fiz junto com minha auto-iniciação ao tarô. Era o natal de 1980, quando me dei um duplo presente: Dogma e Ritual da Alta Magia, Ed. Pensamento, complexo tratado do século XIX de magia teórico-operativa de Eliphas Levi (1816-1875), e ainda The Complete Works of William Shakespeare, Spring Books of London, 1958, a trazer suas 37 peças, os 160 sonetos e seus outros 5 poemas. O dinheiro para os livros consegui com meu avô, que viria a falecer na semana seguinte, no último dia do ano. Considero sejam estas duas obras a melhor relíquia que me ficou de sua herança.

Tarocchi di Shakespeare1

E foi assim, apadrinhado por este meu avô, muito católico era ele, e sem que ele soubesse onde eu havia aplicado a importância que me dera, que me iniciei em duas das mais proibidas questões do esoterismo Ocidental: Shakespeare e o Tarô. E me iniciei no segundo tema quase sem saber que o fazia; é que o descobri conforme lia a citada obra-prima do mago Levi, que toda ela era uma verdadeira senda secreta à alma do tarô, capítulo por capítulo desenhada, a discutir a fundo os aspectos mágico-esotéricos dos 22 Arcanos Maiores. Tudo está lá, tim-tim por tim-tim; entrego, pois, a chave descoberta, mas é preciso ter olhos que saibam ver para abrir as portas do Templo do Tarô com ela. Bem… àquela época não havia quase livros nem baralhos de tarô em todo o Brasil; vasculhando as melhores livrarias de São Paulo, tive mesmo que me contentar com algumas publicações populares da ed. Pensamento, duas das quais, ainda que deixando muito a desejar, ao menos vinham acompanhadas de seus respectivos baralhos – um deles, aliás,  uma razoável reprodução do clássico Tarô de Marselha, com os quais pude exercitar-me e ver como é que a ‘coisa toda’ funciona e cria vida. Mas li também por esta época Meditações sobre os 22 Arcanos do Tarô, edições Paulinas, sem dúvida o melhor e mais profundo texto sobre tarô até hoje publicado. Seu autor? Um monge alemão, filósofo desconhecido, célebre alquimista cujo verdadeiro nome só vim a conhecer na Iniciação que sofri nos terraços de Notredame, conforme mo revelou mestre Christiano Sotero, naquele outono europeu de 1998.

Mas antes que outras peças de nosso quebra-cabeças sejam dadas, tratemos aqui das peças que mais nos interessam, escritas pelo célebre bardo nascido em Strattford-upon-Avon, 100 milhas noroeste de Londres, cujo nome nos oferece nada menos que 4 mil maneiras diferentes de ser pronunciado, conforme a variedade com que ele surge na ortografia inglesa antiga, indo desde Shaxpere a Shagsespire, passando ainda por Xhaghsspear a Shykesspeer, também sem prejuízo algum chamado de Chiquespirra pelos mais cultos caipiras de São Paulo e Minas.

William Shakespeare.0.5Iniciei a leitura das 1081 páginas do calhamaço Spring Books por The Tempest, julgando fosse ela o tormentoso começo de tudo, já que era o primeiro texto a figurar na Obra. Ledo engano; aprendi depois, esta é justamente a última peça escrita pelo dramaturgo. Ocorre que desde 1623, quando se compôs o “1º Fólio de Shakespeare” a reunir suas peças todas, A Tempestade, ocasionalmente esquecida pelos editores Heminges & Condell (ambos haviam sido amigos do poeta e dele herdaram parte de sua fortuna), acabou sendo de última hora agregada à edição, razão pela qual foi impressa à frente de todas as demais. Tendo este Fólio shakespeareano servido de modelo a inúmeras outras publicações, muitas são as edições mundo afora que até hoje trazem A Tempestade como a primeira das 37 peças. A grande maioria delas fez-se encenar no arrojado Globe Theatre, cujo nome decorre da forma arquitetônica do prédio: três andares erguidos em forma de arena. O Teatro Globo foi inaugurado em 1594, às margens do Tâmisa, com capacidade para 2.500 pessoas sentadas, ou três mil, considerando que muitos se contentavam, como eu também aceitaria, em assistir às peças de Shakespeare tempo todo em pé, pagando para tanto um pouco menos pelo ingresso, muito embora cada apresentação durasse algo em torno de umas 4 horas ou mais de espetáculo.

A Tempestade - Próspero, Miranda, Fernand e Ariel.0.6

Próspero, com o auxílio de Ariel, planeja casar Miranda com Fernand, filho do rei de Nápoles

Finalizada em 1611 e apresentada no mesmo ano, The Tempest estreou trazendo nada menos que o próprio Shakespeare no papel de Próspero, poderoso mago protagonista de toda a trama. A trama se inicia com Próspero há 12 anos exilado em sua ilha, desde quando seu trono (era ele o legítimo Duque de Milão) fora usurpado por Antônio, que o traíra, irmão do Rei Nápoles. Gonzalo, conselheiro de Antônio, cuidara para que o barco que levaria Próspero ao exílio, atendendo a pedido deste, estivesse provido de centenas de livros, maioria deles tratados de magia. Gonzalo, então, arremete Próspero e sua filha Miranda, uma criança de 3 anos, ao mar. Não sem antes ter avariado seu barco, agora em atendimento a uma perversa ordem de Antônio, que imaginava dar fim de Próspero dessa forma. O caso é que, contrariando as malvadas expectativas de Antônio, Próspero consegue atracar em uma ilha distante, domínios da temível bruxa Sycorax. Ele a derrota, então, em duelo de magia, expulsando-a para sempre da ilha. De quebra, adota para si um de seus medonhos servos, o monstro Calibã, figura infeliz e disforme, 1/3 homem, 1/3 peixe, 1/3 tartaruga e, além disso, liberta do interior do tronco de um ancestral carvalho o gênio Ariel, espécie de anjo protetor, que fora ali aprisionado por Sycorax. Mas Próspero o subjuga igualmente, prometendo-lhe, contudo, um dia devolver-lhe a liberdade. Quando Miranda cresce, Calibã tenta explorar sua beleza, mas seu pai intervém; salva a virgindade da filha e condena a bizarra besta aos mais pesados trabalhos, tornando-se ele próprio agora um severo dono para o monstro. Miranda nada sabe sobre a realeza de seu passado, nem se lembra de ter visto em toda a sua vida homem algum além do pai. Ela está com 15 anos quando Ariel vem avisar Próspero que uma nau, trazendo seus desafetos todos, passa ao largo, no estreito próximo à ilha. Nela, entre marinheiros e tripulantes, estão Alonso, rei de Nápoles, acompanhado de seu filho, o jovem Fernand, e também sobre o convés está Antônio, o traidor que lhe usurpara o trono, acompanhado de seu fiel subalterno, Gonzalo.

Calibã, aqui como Valete de Paus, prestes a tentar deflorar Miranda

Calibã, aqui como Valete de Paus, prestes a tentar deflorar Miranda

Próspero não perde a chance e ordena a Ariel que cause, pois, uma tempestade, que faça assim naufragar o navio, cuidando, entretanto, de salvar a todos e fazer com que venham bater nas diferentes praias de sua ilha. Finalmente, estava armada sua vingança! Assim pensaram todos quando se encerrou o 1º ato naquela estreia em Londres, numa tarde sem tempestade nem chuva, mas com o Tâmisa inteiramente coberto pelo fog. Mas não vou ser besta de contar aqui como é que termina a história; aliás, pensando bem, vou contar tudinho sim, e conto ainda mais detalhes no soneto, mas não assim tão bestamente que estrague o desencadear surpreendente dos fatos que levarão todos os antigos inimigos de Próspero a ficar completamente entregues à sua mercê. Nessa hora, quando todos esperam que seus inimigos sejam vingados, ou ainda que a decorrer de certas insinuações nos diálogos sobre o palco se desencadeie alguma tragédia shakespeareana, o clímax se dissolve numa esperançosa mensagem de cura e amor a toda a humanidade! E Próspero ainda faz casar sua filha com Fernand! Vixi, agora é que contei tudo mesmo! Mas não faz mal, mesmo porque nada disso tem lá tanta importância na peça quanto o fato de ser ela, A Tempestade, acima de tudo, o anúncio de melhores tempos!

Sim, isto porque ao perdoar seus inimigos, Próspero dá um voto de confiança ao bom entendimento entre os homens e propõe que todos nós saibamos nos despir das personagens que muitas vezes assumimos e que tanto nos iludem quanto à nossa verdadeira essência. O mago Duque de Milão vence, pois, em todas as frentes: recupera seu legítimo trono, casa com felicidade sua filha, transforma Calibã num monstrengo dos mais razoáveis e, finda sua tarefa de recolocar todas as coisas e a própria vida em ordem, conforme prometido fora, restitui finalmente a liberdade a Ariel.

William Shakespeare1.0.6

Ato inédito, Próspero inventa ainda o primeiro momento da história do teatro em que o ator transpõe a convencional barreira da “quarta parede” e interage com o público: deixando de lado o caduceu, isto é, abrindo mão de seu poder mágico, humanamente e por meio de sua fala poética, convida toda a plateia a dar as mãos como gesto de aprovação para que ele e toda a trupe sobre o tablado possam se transportar diretamente a Milão, já que o navio que trouxera seus visitantes, como todos viram, naufragara no 1º ato. E é assim, por força da magia do público, que as cortinas descem sobre os personagens e quando se erguem ninguém mais está em cena. Voltaram para Milão, compreendem os entusiasmados espectadores, e por conta da magia do bem!, sim, porque ser original é coisa própria desses gênios!

Ariel, a soprar tempestades, aparece aqui como "Il Mato" do Tarô, ou o Arcano sem número.

Ariel, a soprar tempestades, aparece aqui como “Il Mato” do Tarô, ou o Arcano sem número.

A Tempestade traduz, pois, um libelo a uma nova ordem entre os homens, onde possa prosperar o amor e o perdão. É também uma divertida apologia à liberdade; por meio dela Shakespeare anuncia o advento de uma Nova Consciência a ser alcançada pelo espírito humano, propõe que subjuguemos nossas forças brutas mais instintivas, esses Calibãs e Ariéis que nos habitam, capazes de constelar realidades imprevisíveis, das mais suaves e sensíveis às mais trágicas e terríveis.  Afinal, todos somos dotados de um espírito indomado, com o qual precisamos nos entender até que possamos dar a ele, de modo o mais seguro, sua completa liberdade, driblando assim o perigo de cairmos na pobreza existencial. A chave está em adestrar e educar os Calibãs ao mesmo tempo em que alimentamos nosso Ariel com a esperança de uma consciência mais elevada.

A Tempestade, marco de uma nova era dramatúrgica, propõe assim ao psiquismo coletivo que se cure o quanto antes de suas velhas mazelas, afinal, passada a tormenta, será bem-vinda toda a bonança de melhores dias. Mas esta peça marca também a despedida de nosso bardo dos palcos. Do alto de sua glória, famoso em toda a Inglaterra, Shakespeare nada mais encenaria até sua morte, que se daria dali a cinco anos. Não por acaso fez desta sua última temporada sublime razão para proferir através da fala de Próspero toda a magia de seu derradeiro legado:

“Somos feitos do estofo com que se fazem os sonhos,
E nossa vida é curto intervalo entre dois sonos”.

Ao que minha, filha, hoje com 13, desde quando há alguns anos me ouviu pela primeira vez contar-lhe esta história e frisar a importância deste pensamento, replicou:

— Ou será que a vida é que é sono, pai? Um sono entre dois sonhos? (…)

Na imponderabilidade da questão de uma criança, também na impossibilidade de uma resposta adulta que nos sirva, é que deito meu Tarô sobre a mesa, sonhando com realidades melhores, imaginando situações presentes e outras mais peças futuras…

SHAKESPROSPEARE

– Encerro meus trabalhos como Próspero,
na ilha entre meus livros, com Miranda,
ad mysterium res unius perpetranda,
meu sonho é vivo e não morre de véspera.

– Mandei gênio Ariel soprar de banda
causando a Tempestade em todo o Bósforo,
que bem fez naufragar antigas víboras,
serpentes cujo mal meu bem abranda.

– Meu usurpado trono recupero,
patifes eu perdoo em minha ilha;
eu caso com Fernand a minha filha;
na cura das tragédias, venço Homero;

liberto Calibã de olhos bisonhos…
– Somos feitos do estofo que urde os sonhos!

Tarocchi di Shakespeare.10 de ouros.0.56

Paulo Urban

Sonetinglês (3 quartetos + dístico)
composto na manhã paulistana de 21 de julho, MMXI,
no trânsito, a  caminho do consultório

 créditos: Tarocchi di Shakespeare é criação do artista plástico italiano Luigi Scapim, edito da Dal Negro, Treviso.

One Comment

  1. Paula disse:

    Grata, chará, pela linda resenha que me encaminha ao Eldorado.

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