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Panterespectro

A Iniciação do Primeiro Portal é experiência indelével na alma de todo neófito. Enfrentei o Espectro era fevereiro de 1978, eu acabara de completar 13 anos de idade, numa operação ritualística que perdurou por oito longas e difíceis horas. Durante breve intervalo no rito, finda as primeiras quatro horas de trabalho, chegou-me a notícia de que um de meus tios-avós acabara de falecer. Meus pais cobravam-me a presença ao velório. No calor do rito, ponderei: que diferença faria se deixasse para cumprir minhas obrigações de família após a Iniciação? Ora, outra oportunidade semelhante àquela talvez só se me oferecesse dali a alguns anos, ou não. Tudo parecia fazer parte de uma mesma provação: era o peso do mundo externo a criar empecilhos toda vez que decidimos orientar a alma para algo de maior significado. Solicitei autorização aos Veteranos que haviam me trazido a fúnebre notícia para que pudesse em grau de exceção telefonar aos meus pais. Levaram-me a uma sala administrativa da Loja, e de lá comuniquei aos meus pais a decisão de que só me dirigiria ao velório após o cumprimento de minhas obrigações iniciáticas. Não creio ter sido muito bem compreendido, mas acabaram por acatar minha decisão.

Ao retornar ao templo, entretanto, logo à entrada fui barrado. Eu simplesmente esquecera a palavra de passe! Sim, aquela notícia, também a difícil e rápida conversa com meus pais ainda aflitos em razão do óbito, aquilo tudo junto, enfim, me perturbara. Respirei fundo. Procurei lembrar quais teriam sido as orientações que o capelão que nos dera ao final da primeira parte do rito, ele bem proferira a senha de readmissão, mas o esforço foi em vão … eu esquecera mesmo a palavra de passe. Não tive dúvidas, tal o sincero desejo de meu coração, aproximei-me do guardião como se fosse soprar-lhe a senha ao pé do ouvido mas, em vez disso, beijei-lhe a face e sorri. Ele sorriu de volta, afinal, eu não passava de um garoto em meio a tantos adultos, e a um gesto de anuência dele, os portões internos se me fizeram abertos. Sete passos mais e reingressava na câmara interna, prestes a dar sequência ao rito dramatúrgico.

Ao final do ritual, mediante juramento, comprometi-me a completar em Paris (desde que possível fosse), nos terraços de Notredame essa minha Iniciação. Para tanto e desde então, ora instalado como ‘Postulante’, manter-me-ia por seguidos anos em estreita relação de discipulado com meu mestre preceptor Christiano Sotero, aquele que sereno ensina a rubra arte da alquimia e nos guia os passos pelo nigredo percurso em busca do cálice de hidromel em que todo o chumbo se redime, também o vaso onde os egos e os desejos todos se diluem.

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Pantera Negra1.Jean Torton.0.31998: às Portas da Grande Catedral sou recebido pelos Irmãos Psicagogos que, sempre prontos a acolher os neófitos, levam-me escadarias acima até o terraço de cobertura. Ali, prestes a cumprir antiga promessa, sou deixado a sós diante do Umbral. Lembro-me, então, do sonho que me assaltara àquela noite, um tanto perturbador. Eu já o relatara pela manhã a mestre Sotero, que me disse ser ele nada mais que o prenúncio do que eu viria naquela mesma noite experimentar, caso cruzasse o Portal. Ele bem me advertira: “Nota bem, são incontáveis e inusitadas as diferentes formas pelas quais o Espectro se apresenta, e muitas as metáforas que o descrevem: é ele tanto nosso ‘Guardião Perpétuo’, como ‘aquele que porta a foice’, ainda ‘o monge sem rosto’, ou ‘o mestre do capuz negro’, também ‘o Senhor da espada flamígera'”.

E foi assim que, diante daquele umbral, imerso em pensamentos e temores, percebi que naquele terraço protegido por séculos de egrégora, uma poderosa aura luminosa se fazia nitidamente perceptível à minha volta. Absoluto silêncio, aos pés do Grande Pórtico, eu passava em memória todo o itinerário que trouxera até ali, a confirmar aquela escolha pré-firmada quando eu tinha ainda 13 anos. Após solitária hora de espera, acercou-se de mim um dos Irmãos, designado a ser meu guia. Pela derradeira vez vinha trazer-me a advertência: era desistir e ir embora se o desejasse, posto que, uma vez cruzado o Umbral, seria impossível regressar até que todo o Hades estivesse em seus abismos atravessado.

Pois, despido de minhas mundanas vestes, olhos vendados e reafirmada a promessa, a três fortes pancadas do Irmão, rangente, faz-se aberta a Porta. Sou então introduzido na câmara interna, onde sou deixado a sós. Sai o Irmão e cerra-se a definitivamente a Porta. Eu iria finalmente haver-me com o Espectro, aquele que me faria sofrer sucessivas mortes na esperança de que viesse a dar com a linha em meio ao labirinto, a resgatar assim o sentido de minha pessoal Missão.

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Sotero, exatamente um ano após o ocorrido, entregar-me-ia a peça que disse haver escrito àquela mesma noite, durante as horas em que estive confinado na câmara de vigília, à esperava do temível Espectro do Umbral:

PANTERESPECTRO

Esta noite sonhei com a pantera,
toda negra e olhos verdes a mirar-me;
toda prata era a mata, só luares…
Com ares de quem sabe, disse a fera:

– Que fazes em meu sonho a penetrar-me,
presente em meus domínios, minha esfera?
Bem que desde a passada primavera,
faz noites, que eu te sinto a aproximares…

– Mal sei como adentrei tua quimera,
se invado sem cautela o teu lual,
se eu sonho ou sou sonhado, pouco importa,

só sei que às noites durmo e bato à porta.
– Sim, e eu sou a guardiã que vive à espera
de todos os Neófitos do Umbral!

C+S.:.
Rito Secretiniciático de I Grau de Templo
Notredame de Paris – MCMXCVIII
N.N.D.N.N.

Pantera Negra2

5 Comments

  1. Disney Medeiros Raposo disse:

    Muito interessante seu relato, Paulo. A experiência narrada mostra o quanto foi significativo em sua vida a vinda de novos conhecimentos, e demarca o caminho para todos aqueles que se atrevem a romper os limites da existência comum. Para o iniciado, o enfrentamento com guardiões de diversos umbrais é uma constante e, sabedor de que eles espelham os elementos que nos faltam trabalhar, aprende com cada dificuldade apresentada, evolui e passa para estágios mais avançados, onde outros umbrais o aguardarão. As iniciações e o contato com os mestres são únicos em suas apresentações, pois são portas que se abrem para novos “recintos” da consciência, cujas passagens passam a fazer parte da essência de quem se inicia. Seu ralato mostra também a necessidade de haver um coração puro, determinado e consciente da importância do caminho a ser seguido, para que o “outro lado” seja finalmente alcançado. Parabéns por ter em seu histórico de vida esses preciosos elementos e por compartilha-lo com os demais.

  2. Maitê Luz disse:

    Uauuuuuuuuuuuuu…que experiência e que versos!

  3. Palavras me faltam para descrever tamanha a força do mistério desse encontro; então, faço silêncio em reverência!

  4. Dani Neves disse:

    Como foi morrer aos 13, no Umbral?

  5. Paulo Urban disse:

    Depois te conto melhor, pessoalmente, como foi morrer aos 13, Dani. Aprendizado bom demais pra poder morrer outras vezes. Mas a grande experiência nem de longe é a morte, continua sendo a vida.

    Contente com esta tua aparição por aqui!

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