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Nas Raízes da Hipnose

NAS RAÍZES DA HIPNOSE

Hipnotismo7.0.45

Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 359, agosto/2002

Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

Hipnotismo6.0.25Muita desinformação ainda existe em relação à hipnose. Psicólogos, psicanalistas, e grande parte da classe médica, incluindo psiquiatras e neurologistas, chegam ao século XXI com sérias dificuldades para compreender tal fenômeno psíquico. Por outro lado, ainda vemos na TV charlatães expondo pessoas incautas a situações ridículas, facilmente alcançadas por meio da sugestão hipnótica. Agindo assim, contribuem para o imerecido preconceito acadêmico em relação a esta técnica.

O embrião da hipnose científica surge nas mãos do médico Franz Anton Mesmer (1734-1815), nascido na aldeia de Iznang, à margem alemã do lago Constança. Mesmer pode ser também considerado o precursor da psiquiatria dinâmica, conjunto de escolas que privilegiam a psicogênese das doenças, procurando melhor tratá-las por meio da relação transferencial entre médico e paciente.

Mesmer5.0.5

Após estudar desde seus 15 anos num colégio jesuíta, Mesmer ingressou na medicina, formando-se em 1766. Conhecedor da física e da filosofia de seu tempo, abraçou também o estudo das ciências proibidas, a astrologia e a alquimia. Influenciado fortemente pelas idéias de Paracelso (1493-1541), Mesmer doutorou-se com uma tese que propunha demonstrar a lei das correspondências defendida pelo primeiro, consoante a qual nosso organismo é um mapa do universo, estando cada uma de suas partes regida por certos astros, a favorecer desde o nascimento o desenvolvimento das doenças a eles relacionadas. Simples exemplo, Marte seria o responsável pelas hemorragias, e essas poderiam ser estancadas por imãs postos nas extremidades do eixo cabeça/baixo ventre.

arte: ed. Madras

arte: ed. Madras

Paracelso assistira à descoberta dos minérios magnéticos, até então desconhecidos para o mundo, fato que lhe trouxe a certeza de que forças invisíveis operam na natureza; e nobre seria o médico que pudesse encontrá-las e dirigi-las para a cura. Entendia ainda que a fé fosse instrumento para o mesmo fim, sendo o medo das doenças mais terrível que elas próprias; por isso procurava sugestionar seus pacientes de modo a fazê-los crer que ficariam sãos.

Mesmer seguiu à risca o modelo da anamnese de Paracelso. Quebrando o protocolo, aceitava discutir com seus pacientes as possíveis causas de seus males, dando-lhes ouvidos e atenção antes de prescrever. Por essa simples razão, seu consultório tornou-se muito concorrido.

Em 1773, foi chamado a atender a srtª. Franzl Oesterline, jovem de 29 anos, da alta sociedade vienense, que apresentava vômitos, sufocações e episódios de cegueira histérica. Pela primeira vez aplicou o tratamento magnético alcançando surpreendentes resultados que lhe garantiram imediata popularidade.

Logo não lhe era mais possível atender individualmente a contento. Diante da excessiva demanda, inventou o célebre braquet, aparelho que consistia de uma tina de carvalho cheia d’água e limalha de ferro, dentro da qual repousavam garrafas com água magnetizada, deitadas em série e com seus gargalos apontando para o centro do conjunto. Por aberturas na tampa, saíam varas, cintas e pulseiras de ferro móveis, para serem aplicadas nas partes doentes. Os pacientes sentavam-se às dezenas num banco circular que dava a volta em todo o sistema, e davam-se as mãos ou seguravam uma mesma corda “ativada” por varas magnéticas que saíam da tina central.

Sessão mesmérica ao redor do "baquet". À direita, Mesmer atende uma paciente que desmaia. O salão era forrado de espelhos para intensificar o magnetismo.

Sessão mesmérica ao redor do “baquet”. À direita, Mesmer atende uma paciente que desmaia. O salão era forrado de espelhos para intensificar o magnetismo.

O ambiente era penumbroso, nele ardia um fogo sagrado e se queimava incenso. Um músico contratado tocava órgão num dos cantos desse estranho consultório armado no salão da casa do médico. Por vezes, quem tocava era Wolfgang A. Mozart, companheiro de loja maçônica, que inspirara ao médico a idéia de que o poder sugestivo da música poderia ser associado à experiência magnética, de modo a potencializá-la.

Ao soar de uma sineta, Mesmer entrava em cena solenemente. Vestindo sempre uma casaca lilás, trazia às mãos sua baqueta magnética, com a qual promovia passes e circulava entre os presentes. Fitava este ou aquele com olhar penetrante e fazia gestos enigmáticos proferindo monossílabos. Alguns pacientes tremiam, outros dançavam inquietos, uns desatavam a rir, a chorar, ou logo caíam em convulsão histérica (semelhante àquelas tão comuns nos cultos que exploram o exorcismo), e os mais violentos eram levados a quartos acolchoados contíguos ao salão até que recuperassem, aos poucos, sua calma. As pessoas, em sua maioria, saíam dali dizendo-se curadas dos piores males.

W. A. Mozart (1756-1791)

W. A. Mozart (1756-1791)

Mozart recomendou seu amigo à imperatriz da Áustria, cuja afilhada, Maria Teresa Paradis, era uma pianista de 18 anos que ficara cega inexplicavelmente desde os quatro. Já fora atendida por muitos médicos, entre eles o Dr. Von Stoerk, que assistia regularmente à imperatriz, incapaz, contudo, de curar a menina. Com algumas sessões de passes magnéticos e muita conversa, Mesmer conseguiu que a paciente voltasse a enxergar. Por conta disso, sua fama alastrou-se pela Europa.

O feito atraiu a admiração e também a inveja de muitos. Os acadêmicos puseram em dúvida a cura dizendo que a fé da jovem fizera o milagre, nada havendo de verdadeiro no tratamento magnético. Tão logo a fé da jovem diminuísse, sua cegueira voltaria, profetizavam. Os pais da moça, incrivelmente, invadiram a casa de Mesmer e o agrediram violentamente; em seguida esbofetearam a menina. Incomodava-lhes que, com a cura obtida, perderiam a “pensão doença” que a imperatriz lhes destinava. Maria Teresa nem bem voltara a enxergar e já lhe sobravam motivos para recusar-se a ver os fatos à sua volta! Conforme previam os doutos, caiu novamente na cegueira. Mesmer sentiu-se por isso arrasado. Suas técnicas ficaram sob suspeita e uma comissão científica resolveu investigá-lo. Sumariamente, concluiu por seu charlatanismo, obrigando-o a deixar o país. Mesmer4.0.25

Mesmer segue então para Paris, onde é recebido com grande entusiasmo. Estabelece-se na Place Vendôme e faz da sala principal de sua casa seu novo consultório, bem maior que o primeiro, capaz de receber 130 pacientes por sessão. Chega a atender a rainha Maria Antonieta, o legislador Montesquieu, os iluministas La Fayette e Benjamin Franklin, entre outros ilustres.

Em 1784, a exemplo do ocorrido na Áustria, a Academia Francesa de Ciências e a Real Sociedade de Medicina, por meio de uma comissão presidida por Luís XVI, tendo à frente Benjamim Franklin e Lavoiser, resolve interrogar o estrangeiro. Havia queixa de vários médicos que viam debandar seus clientes para o mesmerismo. Após tendenciosas diligências, a Academia põe fim aos trabalhos Mesmer, taxa-o de impostor por acreditar no fluido invisível terapêutico, e explica em seu relatório que as curas alcançadas eram fruto do poder da imaginação. Os membros da comissão convencem o rei de que o mesmerismo constituía um perigo para a sociedade.

Mesmer2.0.48

Pouco após a revolução de 1789, desconsiderado e definitivamente impedido de trabalhar, Mesmer volta a Viena para viver modestamente em sua antiga casa, ora arrendada pela princesa Gonzaga. Acusado por ela de ser simpatizante do terror francês, passa um tempo na prisão e é forçado novamente a deixar a Áustria. Termina seus dias em Meersburg, à margem do lago Constança, mesma região onde nascera. Em 1812 recebe convite para assumir cátedra na Berlim do rei Frederico Guilherme III, mas recusa-a por estar idoso. Morre em 1815, aos 81 anos, resignado em sua simplicidade.

Hipnotizado por Puységur, Victor Race toma leite como se fora um gato

Hipnotizado por Puységur, Victor Race toma leite como se fora um gato

Mesmer, porém, deixara viva a chama do magnetismo animal com seu discípulo, o marquês Chastenet de Puységur (1751-1825), que exercitava o mesmerismo em sua propriedade rural de Buzancy, tratando camponeses que ele reunia em círculo, de mãos dadas, sob um carvalho que ele mesmo magnetizara. Em 1784, ano em que seu mestre era expulso de Paris, o nobre deparou-se com algo absolutamente novo. Ao magnetizar Victor Race, que se queixava de dores torácicas e dispnéia, viu o paciente adormecer profundamente em seus braços. Nem a mãe de Race conseguia despertá-lo, e o rapaz, curiosamente, respondia lucidamente apenas às perguntas formuladas pelo marquês, aceitando suas sugestões de que ficaria bom ao acordar, o que de fato ocorreu. Embora sentindo-se curado, Race não admitia haver dormido. Registrava-se assim o primeiro caso descrito de hipnose, claramente documentado.

Puységur denominou o fenômeno de sonambulismo, posto que Race era capaz de andar e cumprir ordens mesmo dormindo, e justificava-o por conta de “fluidos planetários” que ligavam sua mente à de seu paciente.

Chasyenet de Puységur aplicando passes sonambúlicos a uma paciente

Em 1813o abade José Custódio de Faria (1756-1819), natural de Condoline de Bardez, Índia portuguesa, inaugura em Paris um curso público de “sono lúcido”, demonstrando ser possível fazer adormecer pessoas desde que sua atenção fosse concentrada num olhar ou mesmo num objeto. Proclamava assim a natureza subjetiva dos “fenômenos magnéticos”, dizendo que o sono poderia ser obtido mesmo sem a presença do suposto magnetizador. Alexandre Dumas (1802-1870) imortalizaria em 1845 o abade Faria como personagem lendário de O Conde de Monte Cristo, merecido registro do observador que primeiro arriscou uma hipótese psicológica para o fenômeno hipnótico.

No ano de 1841James Braid (1795-1860), cirurgião oftalmologista de Manchester, Inglaterra, dotado de espírito crítico, viu-se intrigado diante das exibições de Lafontaine, um mesmerizador francês que fazia turnê em seu país. Braid concluiu que as pessoas podiam cair “num estado particular do sistema nervoso determinado por manobras artificiais” desde que ocorresse fadiga cerebral e cansaço visual, o que se conseguia por meio de repetições de palavras e gestos sugestivos. Os passes, segundo ele, não eram dotados de poder magnético algum, mas predispunham os pacientes a um estado psicofísico alterado. Braid cunhou o termo hipnotismo em sua obra Neurohipnologia, de 1843, e colaborou para o desenvolvimento da técnica hipnótica, desde então também chamada de braidismo.

O francês Auguste Liébault (1823-1904), quando estudava medicina, ao ler um relatório de 1848 sobre o magnetismo, interessou-se pelo assunto e criou método próprio para produzir o sono artificial. Já era um respeitado doutor, quando, em 1882, recebe a visita do médico francês Hippolyte Bernheim (1840-1919), desejoso em aprender o hipnotismo. Em 1884 fundam juntos a Escola de Nancy, que imediatamente faria oposição à Escola de Salpêtrière, chefiada pelo parisiense Jean Martin Charcot (1825-1893), famoso por seus estudos experimentais sobre a histeria.

Em 1870, a administração de Salpêtrière decidira separar os doentes alienados das mulheres histéricas e dos epilépticos, juntando essas duas últimas patologias numa mesma enfermaria. Rapidamente as histéricas assimilaram os sintomas epilépticos em suas crises e aprenderam a simulá-las plasticamente. Charcot valia-se da hipnose para diferenciação diagnóstica, capaz que era de fabricar sintomas extraordinários nas histéricas submetidas à sugestão hipnótica, de modo a provar o caráter neurótico dessa doença. Charcot inaugurava assim uma classificação da histeria descrevendo-a em quatro fases e vários tipos, julgando-a fruto da hereditariedade ou de traumas ligados à sexualidade.

Aula de J. M. Charcot na famosa Salpêtriére, em Paris

Aula sobre hipnose e histeria ministrada por J. M. Charcot na famosa Salpêtrière, em Paris

A histeria e a hipnose foram razão da disputa entre Nancy e Salpêtrière, que se estendeu por dez anos. Bernheim dizia ser a hipnose decorrente da sugestão verbal, e estar já desmistificada em fins de século XIX, quando a clínica da palavra sobrepujava a do olhar. Acusava Charcot de fazer mau uso dessa técnica, já que dela se servia não para fins terapêuticos, senão para provocar crises convulsivas em suas pacientes, manipulando-as de modo a conferir um status de neurose à histeria. O médico de Nancy afirmava ainda que os efeitos alcançados pelo hipnotismo poderiam advir por simples sugestão dada em estado de vigília, estando aí o prenúncio do que mais tarde veio a se chamar de psicoterapia.

Circulava por essa época a teoria da catarse do médico Jacob Bernays (1824-1881) – tio de Martha Bernays, futura esposa de Freud – que trazia uma proposta de cura por meio da palavra. Inspirado no Corpus Hipocraticum, Bernays acreditava que o tratamento das doenças se daria pela liberação de seus elementos opressivos. Uma vez extraído o segredo patogênico pela fala, o mal deixaria de existir. Tal idéia encontraria na psicanálise do médico vienense Sigmund Freud (1856-1939) seu esplendor.

Instantâneo de Freud aos 35 anos (1881)

Instantâneo de Freud aos 35 anos (1881)

Freud fora aluno de Charcot de outubro de 1885 a fevereiro de 1886, e se impressionara com as demonstrações de hipnotismo nas aulas em Salpêtrière. Chegou a traduzir para o alemão o primeiro volume das Lições de terça-feira, escrito por Charcot. Foi ainda influenciado por Liébault e Bernheim, traduziu também um livro deste último, e recebeu aulas em Nancy durante o verão de 1889, pouco antes de ir a Paris assistir a dois congressos internacionais sobre hipnotismo.

Mas o vivo interesse de Freud pelo hipnotismo, a partir daí, gradativamente decresceria. Posso apontar algumas razões para isso, bem distantes do mito comum que faz de Freud um incompetente para aprender a hipnose. Aluno interessado que fora de Charcot e Bernheim, é improvável que não assimilasse bem tal prática. Curiosamente, em sua autobiografia de 1925, ao relatar as visitas que fizera à Escola de Nancy, Freud se vale de um argumento estúpido ao dizer que a hipnose só se presta ao ambiente hospitalar, sendo inadequada à clientela particular. Ele diz: “Abandonei, portanto, a hipnose e só conservei dela a posição deitada do paciente sobre um divã, atrás do qual eu me sentava, de modo que eu o via, sem ser visto por ele”. Ora, o que salta à vista aqui não é sua incapacidade para a prática hipnótica, mas sim sua imaturidade, própria dos que se iniciam na arte da psicoterapia, diante da questão da contra-transferência (sentimentos despertados no inconsciente do analista e projetados sobre o paciente), que Freud preferiu manejar por “detrás do biombo”. Daí propor aos psicanalistas que se comportem feito espelhos, assumindo atitude completamente passiva em sua escuta.

Levemos também em conta que as idéias de Freud sofreram durante décadas forte resistência por parte do saber acadêmico vitoriano, que as criticava sem querer compreendê-las, e associar a psicanálise a uma hipnose ainda estigmatizada pela aura de superstição em que nascera, seria decretar o fim precoce da nova teoria.

E digo mais: para a prática psicanalítica a hipnose não é mesmo necessária. Podemos dizer que Freud criou a psicanálise privilegiando a catarse em detrimento da hipnose, e o fez com razão nesse ponto, sem sequer valer-se da sugestão; afinal, o discurso do paciente em vigília é seu suficiente material de trabalho para acessar as portas do inconsciente. Isto, porém, não destitui a hipnose de seu próprio valor terapêutico.

Hipnotismo3.pintura.1893.0.25

Vejo outro equívoco de Freud (repetido pelas gerações de psicanalistas cujo maior prodígio é reproduzir à risca até os defeitos de seu mestre) ao acreditar que a hipnose servisse apenas para dar sugestões fáceis aos pacientes, de modo a levá-los por um caminho temporário e fictício de cura. Hoje, havendo passado o furacão da psicanálise sobre a hipnose, ela resta incólume como excelente via de acesso ao inconsciente e, sempre que trilhada por profissionais competentes, estabelece importante relações entre sintomas somático-viscerais e nosso psiquismo mais profundo.

Em 1998, na Universidade de Harvard (Estados Unidos), pacientes sob hipnose receberam a sugestão de que enxergavam cores numa figura em preto e branco. Avaliados pela tomografia por emissão de pósitrons (exame capaz de mapear áreas cerebrais), comprovou-se que a região relacionada à visão das cores era especificamente ativada. Mais uma prova de que o estado hipnótico diferencia-se do sono simplesmente.

Também é largamente reconhecido o uso da hipnose para alívio de dores, como anestésico para procedimentos dentários, como agente aliviador de estresse, regulador da pressão arterial e outras funções orgânicas, como instrumento de apoio no pré-natal e parto, etc. Mas entendo esteja na psicoimunologia seu futuro promissor, podendo a hipnose tanto retardar a evolução de doenças auto-imunes como melhorar o padrão imunológico de pacientes cancerosos e imunodeprimidos.

A verdade é que ainda estamos longe de aproveitar a hipnose em sua plena capacidade, mas as psicoterapias, modo geral, têm muito a enriquecer com sua prática. E se o leitor chega ao fim destas linhas acordado e absorto pelo texto, sentindo-se melhor inexplicavelmente, que preste bem atenção, pois poderá, sem o saber, ter sido há alguns momentos hipnotizado.

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