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Museu Egípcio Brasileiro

MUSEU EGÍPCIO ITINERANTE

 Texto de PAULO URBAN, publicado na Revista Planeta, edição nº 347, agosto, 2001

Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

Ano de 1985. Numa fria manhã em Curitiba, um artista está retocando um mural egípcio que acabara de pintar à entrada de uma instituição. Compenetrado em seu detalhamento, pincelando delicadamente uma divindade do panteão egípcio, é surpreendido por uma pergunta proferida às suas costas:

— Você não se sente um artista da Antigüidade egípcia ao pintar este Ptah ?

Ao virar-se, Eduardo Vilela, hoje com 49 anos, depara-se com a figura de um menino. Para seu espanto, o garoto identificara corretamente a enigmática figura que ele pictografava na parede. Ptah é uma das divindades originais por excelência, da qual se formam outros deuses. Marido de Sakhmet, cuja cabeça é de leoa, e pai de Nefertem, o deus-lótus, Ptah cria pela força de seu espírito, dito coração pelos egípcios; e de seu verbo nasceu a língua desse povo. Como outras grandes concepções cosmogônicas, a teologia menfita tendia a unificar numa figura primordial a pluralidade de seus deuses locais. Ptah é a principal divindade da “Enéade de Mênfis”; dele derivam, dentre outros, Hórus (também filho de Osíris e Isís), ou a inteligência de Ptah, e o famoso deus Thot, escriba de cabeça de íbis, que é sua vontade. Mênfis, capital política a partir da Ia dinastia, que se inicia em 2920 a.C, sob o cetro do faraó Menés, acha-se consagrada ao deus Ptah.

Nefertari em sua Tumba – óleo sobre tela de Eduardo Vilela

E isso tudo aquele menino perguntador de apenas 13 anos, pela conversa que se desfiou, mostrava bem saber. Devorando livros de egiptologia desde os 9 anos, Maurício Schneider (hoje com 29) contrariando as regras das férias escolares, madrugara após uma noite de sonhos inquietos, e saíra a andar meio sem rumo. Tivera o palpite de seguir por ruas desconhecidas, e tomou tremendo susto ao dobrar despercebido aquela esquina: em meio à neblina, num átimo sentiu-se em pleno Egito antigo, paralisando-se fascinado diante do mural daquele artista. 

Composição artística – óleo sobre tela de Eduardo Vilela

A sincronicidade estava a operar. Por questões de fórum íntimo, Vilela encerrava com aquela obra um importante ciclo em sua vida. Havendo se iniciado aos 10 anos na arte, além da pintura compusera a partir de inúmeros materiais, incluindo sucata e reciclados, um pequeno acervo egípcio particular, com dezenas de deuses e estatuetas, utensílios e adornos, todos réplicas de peças arqueológicas, num trabalho obsessivo, fruto de anos de pesquisa e aperfeiçoamento artístico. Mas decididamente, não queria mais ouvir falar de Egito; a simples pronúncia deste nome o incomodava; procurando novos caminhos na arte, logo doaria a uma instituição toda a sua produção de peças egípcias.

O pintor teve, então, um insight. Enxergou no garoto que não parava de falar coisas eruditas o fiel depositário de seus livros de arte egípcia. Afinal, queria se livrar daquilo tudo mesmo. Presenteou Maurício, ali mesmo, com dois ou três volumes que inspiravam seu painel: “Tome, são seus”. O menino viu-se deslumbrado diante daquela dádiva, como se fora um egípcio frente ao Nilo. Mas ambos não imaginavam o que lhes reservava o futuro.

Embora se tornasse muito esporádico o contato entre os dois, novos caprichos da sincronicidade fizeram com que Vilela enviasse ao menino seus demais livros sobre egiptologia. O que o artista não previa é que estes fossem chegar a ele num 4 de março, dia de seu aniversário! Outra coincidência: Maurício descobrira haver nascido na mesma data da morte de Champollion (1790-1832), o famoso egiptólogo que passou para a história por ter decifrado a escrita hieroglífica, um emaranhado do qual há dois mil anos o mundo perdera o fio do entendimento. 

Vilela com seu faraó Psunanes I, que governou entre 1039 e 991 a.C., em Tânis, no Baixo Egito.

Fazendo ao jus ao prêmio que o artista lhe ofertava, e seguindo a vocação despontada na infância, dali a alguns anos o garoto tornar-se-ia o primeiro brasileiro a fazer escavações arqueológicas no Egito, pesquisando as tumbas do Bubasteion, datadas desde 1300 a.C. até a era Ptolomaica (350-30 a.C.), em Saqqara, com fundos do Centro Nacional (Francês) de Pesquisa Científica, num trabalho dirigido pelo Dr. Alain Zivie, nome mundialmente reconhecido na egiptologia. 

Rumando noutra direção, Vilela entregou-se a uma fase de óleo sobre telas, produzindo nos dez anos seguintes mais de quatro mil trabalhos, até encerrar este período com uma grande exposição representando de maneira transcendente e inusitada os 22 arcanos maiores do tarô. Abandonou então as telas e atirou-se às esculturas em terracota, predominantemente inspiradas em temas míticos. Produziu centenas delas. Nesse ínterim, Maurício, que passara a ministrar palestras sobre egiptologia desde seus 16 anos, ingressara no curso de História, curiosamente a mesma formação acadêmica de Vilela, e, já formado, viajara algumas vezes ao Egito.

Osíris, baixo relevo, réplica de Vilela

Osíris, baixo relevo, réplica de Vilela

Num de seus regressos ao Brasil, o arqueólogo decidiu reencontrar o artista. Para surpresa do próprio Vilela, a conversa fez ressuscitar sua alma egípcia.  

Analogamente ao gênio de Fernando pessoa, que criticando não haver em seu tempo literatura portuguesa à altura, resolveu ser ele sozinho toda uma literatura para Portugal (de onde surgiram seus heterônimos), Vilela, não contente em estar produzindo esta ou aquela escultura simplesmente, acatou a proposta de Maurício, e decidiu criar um museu inteiro, bem maior que o antigo conjunto de peças do qual havia se desfeito. Era o amigo egiptólogo que fazia retornar ao artista, de forma amadurecida, as benesses que dele desprendidamente recebera. 

Baixo relevo

O inédito do projeto fez nascer o Museu Egípcio Itinerante. Sua proposta? Difundir arte e cultura egípcias por meio de réplicas perfeitas de peças arqueológicas cujos originais acham-se espalhados pelos mais importantes museus de egiptologia do mundo, devidamente percorridos por Maurício, algumas vezes na companhia de Vilela. Visitaram juntos também o Egito em busca de modelos para suas peças. Os originais são medidos, fotografados por vários ângulos, e pesquisados historicamente pelos dois. Depois passam por uma seleção acadêmica feita por Maurício, que elege o material mais importante a ser reproduzido. A obsessiva arte de Vilela se encarrega dessa mágica, e o resultado são peças de valor técnico e cultural inestimáveis.

Entalhe em madeira, réplica do artista E. Vilela

Vilela produz suas réplicas a partir de terracota, gesso, madeira e diferentes resinas. Fabrica, por exemplo, desde utensílios da vida cotidiana dos antigos até colares e peitorais de requintada joalheria; molda máscaras mortuárias e arte estatuária reproduzindo precisamente as marcas deixadas pelo tempo nas peças originais, respeitando rachaduras, manchas e outros desgastes naturais. A partir de um molde de isopor recoberto por resina, gesso e cola, por exemplo, esculpiu a múmia de um sacerdote, réplica de outra que se encontra no Museu Egípcio do Vaticano, e fabricou também cópia do ataúde de 1,80m no qual ela repousa há três mil anos.

“Contemplar a exposição é descobrir os valores que conduziram ao despertar da humanidade, uma fascinante volta ao passado de onde se resgatam muitos elementos incorporados em nossa civilização moderna, como a crença na vida após a morte, o uso do calendário, o consumo da cerveja, princípios artísticos etc…”, explica-nos o artista em seu site www.geocities.com/eduardovilela .

A exposição faz parte das atividades do Círculo Brasileiro de Egiptologia  (www.geocities.com/cbegipto) idealizado por Maurício Schneider, que reúne os interessados no assunto e oferece informações arqueológicas atualizadas, bem como cursos sobre egiptologia, um dos quais ensina a ler os hieróglifos em dez lições, que brevemente será publicado em livro.

Museu de Vilela, matéria de capa na KTM, E.U.A.

O Museu Egípcio itinerante, por ser inovador, tem causado espécie. A Revista KMT, por exemplo, melhor periódico acadêmico sobre egiptologia dos Estados Unidos, dedicou-lhe um de seus números em 1998. “A idéia é percorrer diversos Estados brasileiros, levando a exposição aos mais distantes municípios, popularizando essa milenar cultura capaz de atrair, por seu misticismo e seus mistérios, tantas atenções”, diz o arqueólogo. Questão de princípios, a entrada ao Museu é sempre gratuita, e, viajando de cidade em cidade, seus organizadores pretendem atender a todos que desejem promover o evento, sejam grandes ou pequenos municípios. Maurício costuma abrir as exposições com didáticas palestras sobre egiptologia que, hoje em dia, mais do que nunca, tem se revelado um extraordinário foco de interesse, haja vista o sucesso da exposição temática há pouco encerrada na FAAP (Faculdades Armando Álvares Penteado), bem como esta que a partir de outubro se fará realizar no MASP, ambas na cidade de São Paulo.

Museu de Vilela, matéria de capa na KTM, E.U.A.

Tal fenômeno era esperado Verdade seja dita, o Egito sempre catalisou ao longo da História os olhares de toda a humanidade. Já na Antigüidade, um dos filhos do faraó Ramsés II (1290-1224 a.C.) da XIXa dinastia, por exemplo, tentou à sua maneira recompor a memória do Egito. O séc. VI a.C. trouxe vários nomes: em Mileto, Hekataios escreveu sobre essa misteriosa terra, mas seus livros se perderam. Tales e Anaximandro dedicaram anos de suas vidas ao aprendizado no Egito. Pitágoras lá também esteve por 22 anos, sofrendo duras iniciações.

Caberia ao sacerdote e historiador egípcio Manetho, três séculos depois, compilar a primeira lista com os nomes de todos os faraós, sendo sua classificação até hoje referência para a divisão da história egípcia em períodos e dinastias. A partir da dominação grega imposta por Alexandre Magno que invadiu o Egito em 332 a.C., seguida pela romana que se iniciou no ano 30 a.C., sob vários aspectos houve um interesse mais sistemático sobre esta milenar cultura. Heródoto, pai da História, reporta-nos o país no séc. V a.C., imortalizando a frase “O Egito é uma dádiva do Nilo”. No séc. I a.C., Estrabão aborda sua geografia, e Diodoro da Sicília faz uma exposição enciclopédica do país. Plutarco, séc. I d.C., apresenta-nos sua mitologia. E inúmeros viajantes romanos se impressionaram com o Egito: Plínio, Tácito, Apuleio…

Peitoral, réplica de Eduardo Vilela

Tendo sofrido seguidas conquistas, desde os persas em 525 a.C., até o fim do poderio romano em 395 d.C., raríssimos eram os egípcios que sob a dominação estrangeira ainda sabiam ler os hieróglifos. E seguramente, no séc. V, quando o cristianismo havia plenamente triunfado, ninguém mais detinha a chave da leitura pictográfica.

O Museu Egípcio Itinerante de Vilela em exposição

Após mil anos de dormência, o espírito do Nilo se levanta na Europa com o movimento dos impressores renascentistas que buscava uma síntese filosófica entre o neoplatonismo e a sabedoria egípcia. Foi quando se publicou o Corpus Hermeticus, textos sagrados dos alquimistas atribuídos a Hermes, divindade que entrega o verbo aos homens, correspondente a Thot, na mitologia egípcia. Outra obra que surge é a Hieroglyphica de Horapollo, inicialmente datada há dois mil anos. Biógrafos incautos de Nostradamus costumam dizer que o sábio profeta teria feito dela uma tradução, por ser versado em hieróglifos, publicando-a em 1551. Quase tudo está errado. Neste ano foi editada a Hieroglyfica em caracteres greco-latinos, versão de Jean Mercier, que nada mais era do que uma “interpretação”, posto que ninguém compreendia os hieróglifos, de certo manuscrito atribuído a um sacerdote egípcio que o teria assinado com seu nome iniciático, fusão das divindades que o protegiam: Hórus e Apolo. Certamente, tal manuscrito não poderia ser tão antigo, proveniente no máximo do séc. IV a.C., pois seu autor se revelava um egípcio helenizado. Somente em 1555 Nostradamus traduz a obra de J. Mercier para o francês provençal. Mas se comportou como se fosse mérito seu ter traduzido aqueles sinais egípcios, quando em verdade apenas os descrevia, tirando deles conclusões meramente pessoais.

Busto Escriba, escultura em terracota de Vilela

Busto Escriba, escultura em terracota de Vilela

Os hieróglifos, nome com que os gregos batizaram a escrita egípcia (hieros = sagrado; glyphein = impressão) restariam insolúveis até o séc. XIX. Enigmas cravados nos templos e papiros… Inventados por volta de 3000 a.C., dali a 300 anos já haviam evoluído para uma forma de escrita cursiva, mais rápida e apropriada aos escribas e sacerdotes, denominada hierático, que mais tarde se transformaria no demótico, introduzido em 700 a.C., cujos caracteres assumem radical diferença em relação à pictografia original, de modo que a tradução dos hieróglifos foi sendo pelos séculos esquecida.

Na expedição de Napoleão ao Egito (junho/1798 a setembro/1802), os franceses carregaram consigo várias antigüidades, fruto de seu saque. Os ingleses, quando da capitulação de Menu, confiscaram-nas para si. Entre elas estava uma pedra retirada do forte de São Juliano de Rosetta, no Delta do Nilo, em 1799, da qual foram feitas várias cópias em gesso no Cairo. De volta à França, Champollion Figeac, um dos capitães de Bonaparte, mostrou uma dessas cópias da Pedra de Rosetta a seu primo Jean-François Champollion le Jeune, quando este tinha 10 anos. O menino, que se notabilizara por ter aprendido a ler sozinho, comparando as ladainhas do missal repetidas pela mãe, instigou-se profundamente diante dos sinais enigmáticos da pedra. Escolhendo para si uma missão, debruçou-se desde então ao estudo do árabe, do hebraico e do caldeu, passando daí ao persa, ao siríaco, ao etíope e finalmente ao copta, tornando-se o único europeu capaz de falar fluentemente consigo mesmo nessa língua. E pôs-se a decifrar a pedra. O texto superior está em hieróglifos, o inferior em grego, e o intermediário em demótico. Perito em línguas, Champollion observou que o texto grego revelava ser um decreto do faraó Ptolomeu V, datado de 196 a.C. Comparando-os, conseguiu inicialmente decifrar os nomes de Ptolomeu e de Cleópatra, escritos em hieróglifos. A porta dos templos do passado estava aberta! Estudando por três anos a peça, finalmente decifrou-a em 1824, desenterrando assim o segredo da escrita sagrada dos egípcios, presente que deus Thot dera aos homens. Com sua humilde sapiência Champollion foi ao Egito e, aplicando seu método de decifração às inscrições de tumbas e papiros, confirmou estar absolutamente correto seu sistema. Aquela milenar cultura estava finalmente resgatada. Ao retornar a seu país em 1831, viu-se forçado a cumprir quarentena no navio ancorado no porto de Toulon, quando foi vitimado pelo frio e umidade. Morreria no ano seguinte, após ter sido nomeado professor no Collège de France.

M. Schneider & E. Vilela

M. Schneider & E. Vilela

Maurício e Vilela, chamas preservadas deste espírito sensível e perquiridor de Champollion, decifram-se mutuamente feito arqueólogos em trabalho de escavação, e o resultado disso é o Museu Egípcio Itinerante, produzindo e preservando a arte e a cultura do Egito. E não são apenas suas esmeradas peças que viajam pelo Brasil afora, senão cada um de nós, por meio do fascínio que nos causa a coleção, ao sagrado e misterioso passado da humanidade.

Sarcófago, réplica de E. Vilela

SERVIÇO:

Para uma boa introdução à Egiptologia: leia O Egito Antigo, editora Saraiva, 2001, de autoria do egiptólogo brasileiro Maurício Schneider. 

One Comment

  1. Rita de Cássia Celentano disse:

    Linda história! Impressionante esse registro! Amei!

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