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Da Natureza dos Símbolos

Dia de Reis, sexta-feira, Alan e eu fizemo-nos presentes ao laboratório de mestre Sotero para a preleção preparatória à próxima Iniciação de Grau em nossa Ordem. Fazia tempo não via meu confrade, última vez que ambos estivemos em oração e serviço na casa do mestre era ainda o ano de 2013, quando passamos noite toda aos pés do atanor aceso, cuidando do cadinho e das retortas.

— Também vós, pedras vivas que sois, vos tornastes casa espiritual e santo sacerdócio (…); a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular (…)

Eram palavras da Primeira Carta de Pedro apóstolo, às quais Alan e eu já estávamos acostumados; Sotero adorava abrir seus trabalhos com leituras de diferentes passagens deste inspirado Tratado alquímico.

E lembrou-nos de que há verdades que jamais podem ser ditas, não porque sejam meramente proibidas, mas pelo inefável que guardam em seu âmago.

— Neste sentido é que os segredos são mantidos, não pelo deliberado desejo de ‘fazer-se mistério’, senão pelo fato de que trazem consigo algo sublime, que, entretanto, por mais que tentemos, não conseguimos expressar.

— E como nos aproximar destas verdades? – quis saber Alan.

— Eis a questão! Para isso existem os símbolos. Por meio deles é que os homens tanto sacralizam quanto celebram os mistérios dos quais suas almas comungam. Os símbolos cumprem especialmente traduzir estados estados de percepção e consciência definitivamente interditos aos lábios; fazem-se presentes onde as palavras se mostram inócuas, quando pouco ou quase nada explicam.

Água Mercurial Divina – ‘Baro Urbigerus’, “Besondere Chymische Schriften”, Hamburg, 1705

E deitando sobre a mesa enorme Livro de iluminuras alquímicas, o mestre chamou nossa atenção para alguns elementos que se punham recorrentes ao longo dos 144 símbolos que compunham toda a obra: a cruz, o círculo, o triângulo, o Sol e a Lua, a coroa, o leão, a abelha, o corvo, o castelo, a roda, a lamparina, a espada, a caveira, a serpente, a taça, o caduceu, o pentagrama, outros mais…

— A morte do símbolo seria o fim da civilização! – afiançou.

— Como assim? – olhos vidrados nas imagens, perguntei.

— Ora, símbolos velam ao mesmo tempo em que revelam experiências transcendentes a este mundo; traduzem vivências que se acham eternizadas nos mitos das ancestrais culturas. Seja qual for a civilização, toda sua sabedoria de alma coletiva, angariada ao longo dos séculos e milênios e através das gerações, desde sua mais remota origem, põe-se guardada em esfera mais sublime e esotérica. Daí a imperativa necessidade dos ritos iniciáticos próprios de cada sociedade, a dar conta de ensinar às seguintes gerações onde está a invisível passagem para esse contato com a realidade do mundo transcendente. Neste sentido, os símbolos cumprem o precioso papel de orientar nosso intelecto a essa esfera anímica que jaz oculta além dos véus, noutro patamar de consciência, em tudo distinto do ordinário plano mundano.

— De onde decorre também toda a simbologia hermética de nossa augusta Ordem do TAO…, ajuntou Alan, que ganhou um sorriso do mestre.

— Por óbvio! A secular e decantada simbologia de nossa Ordem cumpre ainda agregar sob seus selos e sigilos toda uma irmandade de almas afins, indivíduos estes que se reúnem com o propósito de cultuar e preservar antigas verdades. Em nosso estrito caso, nossos símbolos tanto preservam verdades quanto transmitem ensinamentos particularmente vivos e comuns às tradições dos Templários, dos Rosacruzes e, claro, dos Alquimistas.

Alan e eu nos púnhamos maravilhados diante da paginação do grande Livro; conforme discursava, o ancião ia molhando a ponta dos dedos na língua, a fim de virar com máximo cuidado as enormes folhas amareladas, esmaecidas pelos anos, ilustradas a bico de pena com nanquim da China.

— Ademais, nenhum rito iniciático de nossa Ordem, como este que se vos avizinha, tem por propósito fazer com que o neófito abdique de sua vida comum, que se desligue de sua personalidade profana. Tanto quanto Nirvana é Samsara e Samsara é Nirvana, o sagrado se encontra igualmente no profano e vice-versa. Neste particular é que a palavra símbolo se faz ainda mais interessante.

Diante de nossos ares interrogativos, prosseguiu Sotero:

— ‘Símbolo’ é nome de origem grega: traz o prefixo syn, que se traduz por ‘junto, unido’ – daí seus correlatos termos ‘sintonia’, isto é, ‘de mesmo tônus, mesma frequência’, ou ainda ‘sincronia’, a expressar eventos que se dão ‘ao mesmo tempo’ – associado ao verbo bolléin, que significa ‘ jogar, atirar, lançar’.

Adorávamos esta sua predileção pela etimologia, sempre a ampliar de maneira lúdica nossa compreensão das coisas.

— Por isso os símbolos não se permitem capturar em palavras – continuou – são eles portadores de conceitos que se mesclam para serem atirados, todos juntos e de uma só vez; conceitos esses que muitas vezes, inclusive, se mostram contraditórios entre si. Quem nunca viu, por exemplo, o símbolo do Tao? Não estou aqui falando da TAO, Tradição Alquímica do Ocidente, nossa Ordem, senão do Tao dos chineses, cujo símbolo máximo envolve a dualidade das polaridades yin e yang que se opõem entre si, ao mesmo tempo em que se completam. Um símbolo riquíssimo, que reflete toda a economia do movimento cósmico, a reunir em si o úmido e o seco, o passivo e o ativo, o fixo e o volátil da alquimia, também o Céu e a Terra e, ainda, trevas e luz, ou crepúsculo e aurora que se alternam em preponderância na sempiterna dança da vida… tudo isso concentrado na figura de um simples círculo, a representar a totalidade de um Universo dividido em duas partes, não, porém, por uma mera linha reta diametral, mas, melhor que isso, por uma senoide, a expressar assim o misterioso jogo interativo entre as partes em seu fabuloso e constante dinamismo.

— E sobre nosso psiquismo? – perguntei, temendo interrompê-lo – Como agem os símbolos?

Segunda Ilustração do Codex de N. Flamel – por Abraham Eleazar, “Uraltes Chemysches Wert”, leipzig, 1760.

Christiano sentou-se à mesa. Fechando o Livro, olhou-nos de modo enigmático:

— Isto vocês sofrerão à pele d’ alma em vossa próxima iniciação. Aguardem por esperar.

— Mas nada pode ser-nos adiantado, uma pinceladinha daquilo que virá? – insistiu Alan.

— Tudo o que posso dizer é que os símbolos exercem inúmeras funções sobre cada um dos que se põem a meditar sobre eles, a investigar seu mistério, seu sentido oculto. Por serem mediadores entre diferentes graus de percepção e consciência, pontes entre nosso mundo e o transcendente, assumem antes de tudo um caráter unitivo, integrando-nos à divina realidade. São elos entre a mente investigativa e tudo aquilo que se põe além dela. Neste sentido é que acabam sendo nossos mestres mudos, posto que professam uma sagrada pedagogia; mais que isso, acabam ainda por operar em nós sua função psicoterapêutica.

— Psicoterapêutica? – perguntamos em uníssono espanto.

— Como não? Nada é tão funcional quanto os símbolos quando se prestam a compensar nosso psiquismo com suas mensagens transcendentes, de natureza totalizante, a nos direcionar o espírito para as mais sublimes experiências transformadoras. Aventuro-me a dizer que são justamente os símbolos a desenhada Pedra Filosofal de todo o hermetismo. Pois, calados e fechados em sua figuração enigmática, proclamam os salmos de redentora sabedoria, justamente aquela a que nossos olhos d’ alma em sua ascese mais aspiram.

— Como fossem metáforas daquilo que nossos estudos jamais apreenderiam pelo mais perfeito raciocínio… – concluiu Alan.

— Exato, são parábolas sem palavras, alegorias daquilo que, incólume, esconde seu próprio segredo. – completou o mestre. E ainda arrematou:

Salitre, Mercúrio & Sal amoniacal – “Viridarium Chymicum de Stolcius vo Stolcenberg”, 1624

— E é melhor que permaneçam assim, metáforas incólumes de verdades intocáveis. Embora silentes em seu aspecto esotérico, feito elementos vivos apontam para significados que, fossem trazidos totalmente à luz, matariam o propósito de ser do próprio símbolo. E, por conseguinte, foi por onde comecei, a humanidade pereceria, encontraria seu fim atirada às trevas da suprema ignorância indissoluta.

E pediu-nos ainda Sotero que lêssemos em silêncio seus versos outrora compostos em relação ao objeto desta nossa preparatória tertúlia, trabalho este que guarda em sigilo o acróstico de seu tema:

MESTRE MUDO 

Eu cumpro traduzir entendimentos
muito além do intelecto racional,
eu lanço ideias, sou paradoxal,
atiro todos juntos os elementos,

sou síntese da Lei filosofal;
encerro em mim fulcrais conhecimentos,
inspiro aos sábios seus descobrimentos,
Sem falas nem dizeres, afinal.

Intimissimamente inconsciente,
Meus modos são secretos, sou segredos
Buscando por sentido em ser sentido;

Oculto em meus Mistérios, entre os dedos,
Lógica própria, a Chave do Incontido,
O Mundo, além da mente, transcendente.

C+S.:.
N.N.D.N.N.
janeiro, ano da Graça de 1990
decassílabos heroicos

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